Não confundir a prática do onanismo com a da escrita

Nem 40 anos tinha e já se sentia uma falhada. Nada daquilo lhe interessava e, no entanto, precisava do dinheiro que recebia. Em breve, quando se esgotassem as suas míseras poupanças, teria de arranjar nova ocupação.

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Pelo andar da carruagem, a carga chegaria ao destino no dia seguinte, que é como quem diz, o texto chegaria às mãos do encenador.

Após várias horas sentada a trabalhar ininterruptamente no seu próximo texto para cena, decidiu ir caminhar pela cidade. Quem escreve sabe que é necessário mover-se, esticar as articulações e pôr o sangue a circular; faz-se um esforço e fica-se naturalmente mais criativo e mais apto para a escrita. Depois do exercício físico recebia uma compensação de serotonina que considerava fundamental para manter a sanidade mental. Ao fim de uma boa meia hora a andar ao frio — o mês de Fevereiro apresentava-se inflexível no cumprimento de temperaturas baixas —, entrou num café escolhido aleatoriamente e o empregado serviu-lhe um bolo, um pastel de nata, sem que tivesse chegado a efectuar o pedido. Não chegou a pedir e bolo e, voilà!, ali estava o pastel de nata diante dos seus olhos.

Não percebeu que raio tinha acontecido. Só tinha pensado em dizer “pastel de nata”, não teve consciência de o ter verbalizado. Ali permaneceu por segundos ao balcão, perplexa, a olhar para o bolo sobre o guardanapo. Perguntou ao empregado: “Mas eu pedi isto?” Respondeu-lhe em voz alta, enquanto tirava um café para outra cliente e o som da máquina se sobrepunha à sua voz: “Sim, mas quer outra coisa?” Ela, inquietíssima, a perguntar apressada quanto era e a deixar a moeda no balcão, a sair disparada para a rua sem esperar pelo troco nem levar o bolo. À procura de ar frio e de algum espaço que lhe permitisse enlouquecer, se era assim que tinha de ser. Nunca mais foi a mesma desde o episódio ao balcão do café.

Quase não saiu mais de casa. Terminou de escrever a tal peça e enviou-a ao encenador por e-mail. Não tem a menor curiosidade de ver como é que aquilo funcionará em cena. O encenador e os actores que se desenrasquem. Na verdade, eles é que têm de perceber essa parte, a da prática. O texto para cena é uma coisa bastante matemática. O dramaturgo apresenta um problema, os actores e o encenador têm de o resolver. Depois de terminar aquele texto, sabia que nunca mais iria escrever. Passou, na realidade, a masturbar-se. Sentava-se à secretária e, em vez de colocar os dedos sobre o teclado, como fez durante anos, colocava os dedos dentro de si. Não se deve confundir a prática do onanismo com a da escrita. Deve fazer-se uma ou outra coisa, nunca ambas em simultâneo.

Infelizmente nem todos os escritores e escritoras pareciam sabê-lo. Tinha a certeza de ter optado por uma prática mais saudável. Apesar de quase não sair de casa, aos poucos sentia-se melhor. Antes andava demasiado aborrecida com a vida que levava, a escrita por encomenda, as caminhadas e o regresso a casa para a música no computador, as refeições pré-feitas, o gato, etc. Nem 40 anos tinha e já se sentia uma falhada. Nada daquilo lhe interessava e, no entanto, precisava do dinheiro que recebia. Em breve, quando se esgotassem as suas míseras poupanças, teria de arranjar nova ocupação.

Nesse período apareceu-lhe uma rapariga no ecrã, através de uma rede social. Recebeu uma mensagem a dizer: “Gosto muito dos teus livros. Também vi alguns dos teus trabalhos no teatro mas não gostei. Deves estar habituada a receber mensagens destas, talvez não signifique nada para ti, mas tinha de o dizer. Parabéns pelos livros! Um beijinho.” Pareceu-lhe o elogio mais desinteressado e displicente de sempre, mas não deixava de ser diferente dos outros. Como a rapariga não fazia parte da sua lista de amigos na rede social, e não tinha a mais pálida ideia de quem se tratava, clicou no link que dava acesso ao seu perfil. Ficou a olhar para a fotografia de uma rapariga de óculos escuros redondos com lentes pretas, que não permitiam ver-lhe os olhos, sentada numa cama de casal sobre uma manta de leopardo. Tão piroso, pensou, e riu-se. A postura insolente e o ar jovem e andrógino despertaram-lhe a atenção. Quem seria?

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