Os tempos não estão de feição para a “mãe de todas as doenças”

A esquizofrenia sempre esteve envolta num manto de fascínio e aversão ao longo dos séculos. Viveu quase sempre nas trevas, refém das mais infames desumanidades. Hoje, tudo é diferente para melhor, embora seja possível fazer muito mais.

Ano após ano, empenhamo-nos em relembrar os mil desafios e dificuldades de quem sofre de uma doença mental. Muitos fazem-no de uma forma envergonhada ou risível, falando de crises de saúde mental, mas quase todos proclamam boas intenções para a inclusão social dos doentes e na luta contra o estigma. Mas este ritual parece perder, a cada passo, a sua força.

A esquizofrenia é uma doença complexa, desconhecida em muitos dos seus aspetos, com um impacto acentuado nas múltiplas funções da mente humana, na relação do doente com o seu mundo interior e com a realidade. Sempre esteve envolta num manto de fascínio e aversão ao longo dos séculos. A sua história, com outros nomes, viveu quase sempre nas trevas, sendo refém das mais infames desumanidades. Hoje, tudo é diferente para melhor, embora seja possível fazer muito mais.

Muito se tem progredido na compreensão da doença e do seu tratamento. Assistimos a avanços das neurociências básicas e clínicas, da genética à psicopatologia, do diagnóstico ao foco no tratamento precoce e na prevenção das recaídas. Temos hoje novos fármacos (da escassa indústria que ainda não abandonou a psiquiatria), intervenções psicoterapêuticas mais específicas, reabilitação neurocognitiva mais eficaz.

No entanto, muitos têm sido os obstáculos que fazem limitar as nossas melhores expectativas. São escassos os recursos que os governos disponibilizam para o tratamento integrado dos doentes, quando comparamos com muitas outras patologias. Mantém-se o estigma e a quase segregação dos doentes por uma sociedade que deixa para trás aqueles que são pouco produtivos, ineficientes ou com um modo de vida diferente. A desagregação familiar, a desigualdade social e a perda de redes comunitárias de apoio no mundo urbano assim como o isolamento e o abandono no interior, tudo desfavorecem.

Não menos relevante, o facto de estarmos confrontados há muito com uma pandemia de consumo de drogas psicoativas ilícitas, cada vez mais toleradas e consumidas por uma população mais nova, sem controlo nem regulação, causa mais próxima da doença ou precipitando uma predisposição latente do indivíduo. Vivemos paralisados perante este fenómeno social e sanitário, sem solução e mal remediado, mas com uma importância central quando falamos desta doença.

Embora os recursos materiais sejam essenciais para uma mudança estrutural no apoio integrado que devemos prestar a estes doentes, temos desafios culturais que não podemos evitar. Estamos muito aquém do aceitável na integração social, laboral e comunitária destes doentes. A informação e a educação da população para a saúde e a doença devem ser um objetivo nuclear, para retirar o medo irracional e a ignorância que provocam dano. Como seres sociais teremos de cuidar de cada um, mas também do grupo, indiferente ou ausente quando se trata de um doente com esquizofrenia. Embora o preconceito seja endémico, devemos centrar os nossos esforços na população jovem, nas famílias, nos profissionais de saúde, na comunicação social, nos empregadores, nas instituições de solidariedade e nos agentes culturais. Será uma tarefa perpétua, para evitarmos o esquecimento ou a ignorância.

Estes doentes silenciosos sem voto nem voz política, dependem da família (quando a têm), de associações ou grupos de apoio (maioritariamente voluntários) e, sobretudo, de um sistema de saúde exangue, tendo a sua derradeira esperança nos diferentes grupos profissionais que os acolhem e cuidam. É com esta população anónima que as pessoas com esquizofrenia esperam poder retirar as suas máscaras e serem tratados e acompanhados com ciência e compaixão, com medicina e humanidade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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