A gola bem-feita

Há palavras que matam. E o peso delas derruba vidas. A raiva é o princípio da guerra.

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"A inveja é daninha porque para além de nos secar também mirra tudo à nossa volta" Mag Rodrigues

“Nunca o invejoso medrou, nem quem dele perto morou.” Recorro demasiadas vezes a este provérbio que nunca ouvi da boca da minha avó, mas ainda assim repito-o. Sei que ela o dizia com propriedade. Do tempo em que víamos melhor no olhar dos outros uma inveja tantas vezes difícil de explicar. A minha avó era uma mulher generosa. Tinha olhos grandes e gestos largos. Trazia sacos disto e daquilo. Dava a este e aos outros. A minha mãe aprendeu com ela.

A inveja é daninha porque para além de nos secar também mirra tudo à nossa volta. É isso que diz o provérbio. Enquanto a felicidade propaga o bem e tenta que se alastre um contentamento maior, a inveja miudinha pode crescer a olhos vistos e tornar infértil o terreno.

Eu, que cresci com tão pouco, nunca quis mais do que um casaco com gola bem-feita. Não é curioso como aquilo que ambicionamos desde sempre é o que nos molda?

As pessoas não sabem o que é uma verdadeira fortuna: eu acho que é ter saúde, mas até ela nos faltar, ou faltar a quem amamos, nada sabemos sobre a verdadeira riqueza. Por isso os que não sabem desse bem maior se ocupam dessa coisa vil que é desdenhar dos outros. Não importa se esses outros lhes fazem mal ou bem. Existem e podem eventualmente irritá-los, e a irritação é sobretudo proporcional à frustração.

Há várias maneiras de os outros me deixarem triste. A principal talvez seja essa de não perceberem que não há maior fortuna do que ter saúde e que o resto se constrói. Esta pequena maldade de bolso mata-me aos bocadinhos. Gente que tem uma casa, família, dinheiro para viver e que, ainda assim, é gananciosa por muito pouco – por nada. Eucaliptos na sua floresta cheia de nada – nada cresce ali.

Quando a minha avó Maria repetia este provérbio, não o dizia em vão. Vinha do que tinha ouvido e visto, do que sentia e, melhor, do que pressentia.

Há gente no nosso tempo que aceita dois ou três acólitos no seu pequeno circuito e que dizima tudo em volta. Incendeiam o que os rodeia com palavras malditas, palavras que magoam, palavras que destroem tudo à nossa volta. Há palavras que matam. E o peso delas derruba vidas. A raiva é o princípio da guerra. Lembram-se de sermos miúdos e de querermos o brinquedo dos outros, mesmo que tivéssemos mais dez do que eles? É esse o princípio da guerra e do ódio. Se ninguém sensato estiver ali para nos agarrar na mão e a puxar, esse sentimento vai crescer sem eira nem beira dentro de nós. Queremos porque achamos que nos pertence. Mesmo que pertença de forma válida e inequívoca aos outros.

A guerra é, no fundo e tristemente, querermos primeiro o brinquedo dos outros, depois a casa dos outros, a família dos outros, o poder dos outros e o país que nem sendo dos outros pode ser nosso.

Tenho vergonha da inveja e da ganância. Vejo um homem rico nu ou um homem pobre nu exactamente com as mesmas partes do corpo descaídas. Não há nada ali que os distinga despidos. Todos iguais com a gravidade a ditar a ordem natural das coisas.

Deixem-me dizer de novo para inscreverem nos vossos pensamentos: “Nunca o invejoso medrou, nem quem dele perto morou.” A vossa raiva momentânea só tem razão de ser se a seguir se diluir com a vossa mão estendida e um assumir de culpa. Em algum momento da vida vamos querer qualquer coisa dos outros ou questionar por que motivo os outros têm e nós não? Sim, mas se o pensamento persistir, procurem ajuda. Pode também não medrar para o vosso lado.

Neste momento da minha vida em que as golas já me surgem bem-feitas, só me apetece questionar por que razão pessoas que amo passam um sofrimento atroz sem que nunca nada tenham feito para o justificar. Nem com justificação encontramos uma linguagem plausível para o sofrimento. Não há justificação. Encolhemos os ombros perante algo que parece ser um desígnio maior, mesmo que nunca se chegue a perceber que desígnio é esse.

Aprender a viver com o bem que se tem. É daqui que nascem árvores. A imponência do jardim dos outros pouca diferença me faz.

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