As batotas de Ventura sobre a teoria da substituição

Com dados errados e projecções infundadas, Ventura grita que “ninguém quer que, daqui a 30 anos, a Europa seja composta por indivíduos vindos de qualquer outro continente menos deste nosso!” Os factos contam outra história.

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Escrevo para agradecer ao amigo que me enviou o post que Pedro dos Santos Frazão, veterinário e deputado do Chega, escreveu em Outubro sobre a “teoria da grande substituição”. Foi um momento de grande aprendizagem.

Só agora me apercebi que também André Ventura será um admirador da teoria racista popularizada por Renaud Camus. Foi preciso Payton Gendron ter assassinado a tiro dez negros em Buffalo, Nova Iorque, no domingo passado, para fazer a ligação.

O senhor Camus é autor de um livro que a direita populista radical adora, Le Grand Remplacement, de 2011, que recupera ideias com mais de cem anos e as adapta à nossa era. A tese diz que as “elites de esquerda” estão a conspirar contra os brancos da Europa para os substituir por povos de outros continentes. A teoria conspirativa está a fazer o seu caminho e alguns autores de “mass shootings” inspiraram-se nela para matar pessoas com base na cor da pele e na origem — sobretudo negros, árabes e asiáticos. O elo entre a teoria e os crimes de ódio é uma nova preocupação nos EUA.

No domingo, o jovem Payton Gendron, um rapaz branco de 18 anos, viajou 300 quilómetros até ao supermercado de um bairro onde moram muitos negros e abriu fogo. Disse que queria matar negros para combater a “grande substituição populacional” que está a ameaçar os EUA.

Será pura coincidência que Santos Frazão tenha usado exactamente essas palavras no post onde celebra o discurso de Ventura na Assembleia da República? “Pela primeira vez no Parlamento português ouve-se falar da grande substituição populacional na Europa”, escreveu. “Este é O [sic] assunto político do século XXI que todos querem ignorar! E esta questão é totalmente de vida ou morte, literalmente!!”

Quando alguém grita, bebo um copo de água e respiro fundo. Feita a pausa, pus-me a ver o vídeo da intervenção de Ventura em Outubro. Previsivelmente, é a cartilha clássica. Vamos por partes.

“A verdade é só uma: tivemos menos nascimentos no ano passado do que em 2015. Podemos dizer que o problema é a habitação, os salários, só que à nossa frente na taxa de natalidade estão países como o Mali, Uganda, Afeganistão e Serra Leoa.”

Tudo verdade. Mas qual é a relevância? Os países mais pobres têm menos educação e por isso mais bebés. Em A Convergence of Civilizations (Columbia University Press, 2011), os demógrafos Youssef Courbage e Emmanuel Todd mostraram a ligação em ciclos longos entre educação e número de filhos (índice sintético de fecundidade): mais escola, menos bebés; menos escola, mais bebés. Ventura, um homem inteligente e que estuda os temas, sabe tudo isto. Mas argumenta o contrário.

Voltemos ao Parlamento: “Atrás de nós estão a Suécia, a Suíça e a Finlândia.” Aqui quase nada é verdade. A França é o país europeu com o índice sintético de fecundidade mais elevado (1,83) e pouco depois está a Suécia (1,67). Têm mais bebés do que nós. Portugal está abaixo da média europeia (1,40) e a Finlândia ainda mais abaixo (1,37). Também a Suíça tem mais bebés do que Portugal (1,67). Que confusão.

Sobre a ideia: é uma banalidade dizer que os países mais ricos têm mais educação, logo menos filhos. Outra é lembrar que a Suécia tem mais filhos do que a média europeia porque apostou em medidas de conciliação trabalho-família, tal como a França é o n.º 1 porque investiu a sério na rede de creches. Ventura quer propor estas políticas públicas para combater a queda de natalidade em Portugal? Vamos a isso.

E chegamos à grande teoria: “Podemos dar as voltas que quisermos: há um problema estrutural que se chama substituição demográfica. A verdade é só uma: a União Europeia [UE] tem vindo a ser substituída demograficamente por filhos de imigrantes. Ninguém quer que, daqui a 30 ou 40 anos, a UE seja composta por indivíduos vindos de qualquer outro continente menos deste nosso que é o continente europeu!” Aqui, Ventura grita a plenos pulmões.

Os factos mostram que isto é falso. Não está a acontecer e nada indica que venha a acontecer. E já nem falo dos imigrantes de que a Europa precisa. Em 2019, os imigrantes eram 13% da população americana e 4,4% da população da UE. No caso europeu, os dados oficiais só contam os imigrantes de “países terceiros”. Esta é uma das batotas frequentes da extrema-direita: mostram números maiores porque contam com as migrações intra-UE, ou seja, as migrações de europeus. Outra batota clássica é calcular as projecções da população futura com base nos índices de fecundidade dos países de origem. Mas está mais do que provado que a taxa de fecundidade dos imigrantes converge com a dos países para os quais imigram. Passam a ter menos bebés logo na primeira geração; na segunda, já estão no padrão europeu.

Esta é uma “questão de vida ou morte” ou é uma questão de atrair votos com medos e mentiras? Não é preciso respirar fundo para responder. Literalmente.

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