Mr. Morale & The Big Steppers: como Kendrick Lamar cozinhou um álbum cru

A abertura de Kendrick para fazer alusões à sua vida pessoal não é algo novo. No entanto, no mais recente álbum, a abordagem é diferente. A escrita no hip-hop é quase sempre relativamente metafórica e sugestiva — algo que Kendrick é conhecido por dominar — mas em Mr. Morale & The Big Steppers encontramos o artista a ser sobretudo descritivo.

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Reuters/MARIO ANZUONI

A 13 de Maio de 2022, Kendrick Lamar ofereceu ao mundo o seu primeiro álbum em cinco anos. Desde DAMN. que não só o trabalho, como informação sobre a sua vida pessoal, foram escassos. 8 de Maio foi dia de lançamento de The Heart Part 5, o que deixou os fãs a desejar ainda mais o regresso do artista. Durante todo este tempo seria de esperar que o vencedor de 14 Grammys, premiado também com um Pulitzer em 2018, tivesse tido tempo de cozinhar um projecto imensamente premeditado e refinado.

E foi exactamente isso que recebemos. Mr. Morale & The Big Steppers apresenta-se como um projecto revigorante, socialmente relevante e multifacetadamente denso – embora talvez não tão denso como To Pimp a Butterfly. Primeiramente, é um álbum sonoramente imprevisível e inovativo –, tanto dentro da discografia de Kendrick Lamar como no panorama geral do hip-hop. Em segundo lugar, não parece ser um álbum que pretenda ter como fim último o sucesso comercial (embora para um artista como Kendrick não atingir isso seja praticamente impossível). Finalmente, reforçando este último ponto, é definitivamente o projecto mais cru, pessoal e revelador do artista até à data.

A abertura de Kendrick para fazer alusões à sua vida pessoal não é algo novo. Em Good Kid, M.A.A.D City as referências a dramas familiares, ambientes sociais violentos e episódios traumáticos já eram prevalentes. O álbum de 2012 demarca-se pela sua abordagem figurativa, quase cinematográfica, destes temas. No entanto, no mais recente álbum, a abordagem é diferente. A escrita no hip-hop é quase sempre relativamente metafórica e sugestiva — algo que Kendrick é conhecido por dominar —, mas em Mr. Morale & The Big Steppers encontramos o artista a ser sobretudo descritivo. Auntie Diaries é um claro exemplo disso.

Nesta música progressivamente intensa e intelectualmente matura, Kendrick descreve as dificuldades passadas por dois familiares transgénero, apontando também o seu crescimento pessoal ao confrontar-se com o sofrimento dos mesmos. Mother I Sober refere extensivamente o historial de abuso sexual a que não só o artista foi sujeito, mas também os seus entes queridos.

Embora todas as músicas sejam tematicamente variadas, há um tema central, evocado através destas experiências pessoais, “relatórios” terapêuticos e desabafos – violência reproduz violência, sofrimento cria sofrimento, traumas individuais levam a traumas geracionais. A cultura do hip-hop também está sujeita a este ciclo vicioso, alimentando-se do mesmo, algo que sempre atormentou Kendrick e que inspirou muito do conteúdo em DAMN.

Este é um álbum imensamente introspectivo, que parte do foro pessoal e volta ao mesmo, não só como autocrítica, mas acima de tudo como meio de Kendrick tomar controlo de si próprio. Em Section.80 podemos ouvir o artista a tornar claro que não é a próxima estrela do pop ou o próximo rapper socialmente consciente – em Mr. Morale & The Big Steppers torna claro que também já não o tenciona ser. Os problemas com a indústria musical, as tensões sociais localizadas e globais, o racismo, o sexismo, as desigualdades económicas e a ganância não serão resolvidos por Kendrick Lamar.

O foco está em si pois, por muito que tente (e, efectivamente, tenta), nunca sentirá que conseguirá mudar o mundo se não trabalhar em si primeiro. Não há volta a dar — o seu poder é limitado, mas não será por isso que deixará de expressar o que pensa. Pede desculpa, mas põe-se em primeiro plano.

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