A receita para ouvir relatos de histórias traumáticas: Dois ouvidos, uma boca e o coração

Atentem aos julgamentos e conselhos, afinal uma das coisas que queremos garantir é que estamos disponíveis para ajudar a pessoa no que precisar e que acreditamos na sua história.

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UESLEI MARCELINO/Reuters

Ouvir alguém falar da sua experiência de sofrimento pode ser, e muitas vezes é, esmagador. Porque podemos empatizar de mais ou de menos e questões como “e se fosse eu?” ou “não tenho nada a ver com isso” podem deitar-nos ao chão. Porque podemos ser invadidos por culpa, por não sentir nada, por sentir o privilégio de determinadas condições de vida ou porque simplesmente nos sentimos inseguros.

De qualquer das formas, por mais que seja desconfortável, é essa sensação que nos permite aprimorar algumas competências essenciais para ouvir relatos traumáticos. Afinal, o que podemos fazer quando alguém partilha algo sofrido e profundo?

Ora, como pontapé de saída importa começar por disponibilizar o nosso tempo e ouvidos, sem apressar ou pressionar com perguntas ou pormenores que nos interessem (mas eventualmente não importem a quem conta). Nunca a expressão “dois ouvidos e uma boca” se adequou tão bem, afinal assim conseguimos criar uma interacção de respeito pelo que connosco é partilhado, criando um espaço de normalização e validação das emoções que vão surgindo.

Relembro que uma pessoa que passa por situações traumáticas experimenta um mundo de emoções que devem, sempre que possível, ser normalizadas. É fundamental evitar frases que desvalorizem (mesmo que sem intenção) como: “Não te preocupes”, “olha para o lado positivo”, “não ligues a isso”. Pode ser útil usar as mesmas palavras que o nosso interlocutor utiliza, seja “sobrevivente”, “vítima”, “refugiado” ou “fugitivo”, tanto faz, o importante é respeitar a escolha da narrativa e, por mais difícil que seja, se não soubermos o que dizer, assumirmos isso mesmo — “não sei o que/como dizer…” —, em vez de tentar aconselhar.

Atentem aos julgamentos e conselhos, afinal uma das coisas que queremos garantir é que estamos disponíveis para ajudar a pessoa no que precisar e que acreditamos na sua história. Mais do que nunca, ter dois ouvidos e uma boca é fundamental, pois ajuda-nos a evitar dar conselhos sobre como lidar com a situação, que possivelmente é distante da nossa realidade, e permite abrir o coração e o colo.

É útil relembrar que não temos um calendário de recuperação de dores ou traumas, que o processo tem muitos altos e baixos e que estes não são “ataques pessoais”.

Talvez já lhe tenha acontecido, ouvir alguém partilhar uma história traumática de perda de há cinco anos e falar como se tivesse sido ontem, com a mesma intensidade emocional. Temos formas diferentes de assimilar as nossas perdas e traumas e, por isso, empatia e paciência de quem nos ouve são fundamentais.

Quando apoiamos e ouvimos um relato de uma situação traumática esta pode activar muitas emoções difíceis de gerir, por isso é fundamental manter o autocuidado e uma rotina onde bem-estar físico e emocional; e nunca esquecer que não precisamos de passar por isto sozinhos (seja quem partilha, seja quem ouve), podemos procurar ajuda psicológica especializada, que ajustando diversas técnicas a cada caso permite a assimilação saudável dessa vivência.


Psicóloga clínica, fundadora da Be Human

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