Para um currículo do não esquecido

Se há aspetos que aprendemos, no decurso da pandemia, é que a fragilidade e a incerteza fazem parte do nosso quotidiano e que a educação precisa de ser reimaginada através de um currículo que discute o conhecimento baseado na singularidade da pessoa humana, prefigurando a escola e a sala de aula um microcosmo de um mundo sustentável, inclusivo, democrático e compreensivo.

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Rui Gaudencio

São inúmeras as reflexões sobre os efeitos da pandemia de covid-19 na educação e na escolarização. Como evento, criador de mudanças e de uma nova compreensão da realidade, a pandemia mostrou a fragilidade dos sistemas educativos, sobretudo na utilização parcial de tecnologias digitais, que faziam parte do novo normal em construção, de que a OCDE tão persistentemente falava através de um novo quadro pedagógico para a aprendizagem, centrado na bússola de aprendizagem.

Num volume totalmente dedicado à capacidade de resposta curricular à crise — entendida numa multiplicidade de dimensões interdependentes — a UNESCO publicou, em 2021, um número temático da revista Prospects, com a particularidade de incluir textos de autores pertencentes a uma grande variedade de países.

Vivendo-se tempos virais, com consequências impensáveis na escolarização das crianças e dos jovens, é pertinente perguntar se a pandemia constituiu ou não uma oportunidade para mudanças substantivas no currículo, incluindo uma discussão ético-política da inclusão e da igualdade.

Qualquer discussão sobre o currículo implica reconhecer que toda a proposta de mudança está sujeita à incerteza e à vulnerabilidade de outras crises que têm afetado a humanidade, não sendo de descurar, na argumentação de Latour, o papel catalisador da pandemia para a consciencialização das pessoas face às alterações climáticas.

Se há aspetos que aprendemos, no decurso da pandemia, é que a fragilidade e a incerteza fazem parte do nosso quotidiano e que a educação precisa de ser reimaginada através de um currículo que discute o conhecimento baseado na singularidade da pessoa humana, prefigurando a escola e a sala de aula um microcosmo de um mundo sustentável, inclusivo, democrático e compreensivo.

Mais do que um plano, sujeito às regras de exequibilidade técnica, o currículo promove o diálogo sobre o conhecimento, a subjetividade de quem aprende e a objetividade da partilha social, fomentando, ao mesmo tempo, interdependência, tensões e conflitos.

Não há um currículo global, como não há uma história global sem o conhecimento do particular e do contexto, pelo que a diversidade e a diferença são referenciais para qualquer proposta curricular subordinada ao objetivo estratégico da inclusão.

Um currículo contextualizado é uma prioridade de política educativa, respondendo a questões que apenas as pessoas, num dado meio, conhecem e exploram de forma coesa para a construção da sua identidade coletiva. Mais do que nunca, o currículo promove a integração dos saberes, dando sentido ao aprender e ao estudar, pois a vida dos alunos, enquanto futuros-adultos, acontecerá num contexto de partilha e entendimento humano.

A insistência na promoção de uma competência global apenas pode ser argumentada se o currículo tiver como referencial a discussão crítica de uma cidadania global, ligada aos interconectados problemas das pessoas, nesse tal conhecimento do mundo, referido por Heidegger. Com efeito, o currículo será pró-ativo, antecipando problemas e contribuindo para a sua exploração como conteúdo escolar, caso contrário, tornar-se-á no currículo esquecido e não no currículo do presente direcionado para o futuro.

E o currículo esquecido será aquele que não integra problemáticas que fazem parte do mundo dos alunos, seja as que os afetam pessoalmente, seja as que dizem respeito a situações que lhes são comuns, no quadro de uma globalidade partilhada.

Muito embora a perspetiva instrumental de currículo ligada aos resultados tenha um lugar proeminente nas escolas, sendo valorizada socialmente, e cada vez mais fomentada pelas políticas de partilha de conhecimento, a pandemia pode representar uma oportunidade para discutir o significado das aprendizagens, equilibrando os lados cognitivo e social da escola.

Nessa urgente reconstrução de propostas curriculares, não se poderá ignorar que há crianças e jovens que tiveram perdas significativas de aprendizagens, que estiveram sujeitos a experiências emocionais e psicológicas muito diversas e que estiveram desligados da relação pedagógica por muito tempo. Mesmo com o regresso ao ensino presencial, o uso da máscara continuou a produzir limitações pedagógicas muito significativas.

Se o ensino remoto de emergência foi uma realidade bem exigente para professores, alunos e pais, com a mudança imediata para o online e para outros recursos educativos, é indubitável que a escola jamais será a mesma. Os modelos híbridos de educação já fazem parte do currículo, podendo ser discutido se os modelos digitais já chegaram ao seu núcleo ou se estarão — ou permanecerão — nas suas margens.

A escola como ecrã tem as suas vantagens inquestionáveis, mas as emoções e a participação humana continuarão a ser o centro da pedagogia, por maior que seja o sonho de a tecnologia substituir o que de mais pessoal e singular existe na relação pedagógica, individualizando e parametrizando algoritmicamente percursos de aprendizagem, finalmente libertados de um currículo baseado em standards.

Porém, já não se trata de um período de transição da escola para um mundo digital, pois não há regresso à escola que existia, sendo prioritário incorporar as tecnologias digitais nas formas de aprender e ensinar, com alterações significativas na abordagem do conhecimento e nos procedimentos de avaliação.

Um currículo para tempos de crise é algo que já faz parte do quotidiano, não sendo possível ignorar os problemas sociais que as pessoas enfrentam num mundo de desigualdades.

Para isso, será fundamental que na escola sejam proporcionados projetos, ações e ideias que reforcem atitudes de autorreflexão crítica, na medida em que o currículo tem de responder aos assuntos do presente, mediante uma ontologia do discurso de verdade, questionando a pertinência de uma educação pragmática, enquanto solução de todos os problemas, e reconhecendo que a pandemia é uma crise curricular porque é uma crise humanitária.

Assim, a pessoa, que é o aluno, estará no centro do currículo, sem esquecer que, com a pandemia, ocorreu uma aprendizagem – individual e coletiva – de como sobreviver física, psicológica e educacionalmente.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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