Quando é que vêm buscar a vossa tralha?

A arrecadação é um bem comum. A nossa garagem está cheia de coisas inúteis dos nossos filhos, a vossa com a dos vossos filhos e será assim de geração em geração.

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@designer.sandraf

Querida Filha,

Isto não é uma carta, é um ultimato — quando é que tiras as caixas de cadernos e livros, de roupa e de brinquedos do meu sótão?

Sempre que lá entro, encontro a tua tralha e a dos teus irmãos, mas os anos passam, os ultimatos caducam, e continua tudo no mesmo sítio.

Começo a procurar razões psicanalíticas para esta resistência. E mais não digo, não vão vocês encontrar uma teoria para não se darem ao trabalho de vir vistoriar o que ali guardaram e darem-lhe destino. Longe daqui.


Querida Mãe,

Tenho imensa pena, mas não posso tirar nada do seu sótão. Não tem nada a ver com o facto de não ter espaço em casa e de ser super útil ter uma arrecadação gratuita para coisas que não uso, mas não quero deitar fora. Tem, sim, com o facto de já ter sido expulsa, por si!, da minha primeira casa (o seu útero, caso não esteja a acompanhar a minha teoria) de um dia para o outro. Sem pré-aviso. Cheguei aqui a esta terra sem roupa, nem nada!

Com o esforço do meu trabalho (o seu dinheiro, tempo e recursos) construi um baú cheio de lembranças da minha adolescência. Uma relíquia que guarda parte da minha essência. Tudo isso está conservado na catedral que é a casa da mãe. Que, por vezes, visito em peregrinação nostálgica. As casa da mãe têm regras muito explícitas — surpreende-me que não tenha recebido o memorando — que passo a citar:

  1. Os filhos têm a chave e entram quando querem. É uma questão de suavizar a vossa transição, não fossem sentir-se livres e independentes, capazes de vida e intimidade própria.
  2. Quando passamos a porta, tornamo-nos um bocadinho adolescentes, outra vez. Refilamos porque no frigorífico não há aquilo de que gostamos, embora saibamos racionalmente que não teria lógica nenhuma continuarem a comprar o nosso queijo fresco preferido, quando só lá vamos de 15 em 15dias.
  3. As mudanças são vistas de sobrolho carregado: “Como assim?! O meu quarto vai ser transformado num escritório?”, “Não acredito?! Como é que a mãe se atreveu a dar a caderneta de cromos que eu adorava se eu só fiz 45 anos a semana passada!”.
  4. A arrecadação é um bem comum. A nossa garagem está cheia de coisas inúteis dos nossos filhos, a vossa com a dos vossos filhos e será assim de geração em geração.

Espero que se conforme depressa,

Beijinhos


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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