Os olhos saturados

Uma pessoa dá-se conta de que nunca chorou as lágrimas todas porque sempre as evitou.

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"Às vezes, é como se não houvesse ninguém no mundo com um pedaço de humanidade a quem escrever" Mag Rodrigues

Descobri que tinha um saco de lágrimas que nunca abri. Foi isto mesmo que disse a uma amiga enquanto os meus olhos se enchiam de novo de uma matéria pouco escrutinada chamada dor. A dor líquida que nos trai num segundo apunhalando a garganta e subindo até aos olhos.

Há dias, esteve cá um amigo de longe, que vendo os passos da minha filha se comoveu. Foi um momento que só agora as palavras podem ousar descrever. Ele viu-a, fez-lhe perguntas e depois, quando ela se voltou a enfiar no quarto, já tinha os olhos a transbordar. Chorava por ver a vitória que ele nunca pudera gritar com aquela idade. Chorava de orgulho e da dor que nunca se chega a ultrapassar. Eu acho que mentimos se dissermos que vencemos a dor. Ela fica aqui como uma bala entupida, e basta um movimento imprevisto para que se faça notar – para nos lembrarmos de que ainda estamos vivos.

Uma pessoa dá-se conta de que nunca chorou as lágrimas todas porque sempre as evitou. Os homens, sobretudo os de uma certa geração, desabam num filme, numa subida a um pódio, a ouvir uma música épica tantas vezes banalizada. Estes homens que vieram de outro tempo, em que botão carregam para nunca chorarem?

“Espero para estar sozinha para poder chorar” – disse-me uma amiga. E eu juntei-me a esse coro mudo como se nos representássemos na associação das lágrimas, para dizer, eu, Inês, 50 anos, espero que as luzes se apaguem para chorar.

O que nos comove não tem forma, só saída. Sabes que, se te permitires e não lutares contra isso, as lágrimas vão escapar pela nesga dos olhos, e é inesgotável. Há um ponto em que as lágrimas, quase febris, te queimam os olhos saturados. E continuas. E pensas: há quanto tempo eu não chorava? E há nisso uma real interrogação como se chorar ou rir nos medisse a capacidade de estarmos vivos. Uma coisa ou outra. Uma coisa e outra fazem-nos sentir vivos. Preferimos rir, mas as lágrimas têm de ser escoadas.

Nunca quis ter olhos que não fossem os meus. Já quis, seguramente, ter outras pernas, outros braços, outros pés, mas os olhos, estes que são tão permeáveis à dor, não os trocava por nada. Nem quando os sinto sujos e gastos de ver tanta coisa que me agride. Às vezes, é como se não houvesse ninguém no mundo com um pedaço de humanidade a quem escrever. O mesmo sentimento que nos atirava para um diário para dizer: eu hoje estou triste. Entrar na idade adulta impede-te de voltar a esta formulação simples que adias, que vais camuflando ou trocando por uma reacção sem sentido. Dizeres que estás triste entregaria a tua vulnerabilidade ao mundo. E, de facto, não importa a idade que tens agora, mas às vezes ninguém está interessado na tua sensibilidade. Tens quantos anos? Cresce. Faz-te à vida.

As lágrimas recolhem ao saco das dores adiadas que não te são permitidas por já seres adulto. Ou por seres homem. Ou por seres mulher e não quereres dar razão ao estereótipo misógino de que as mulheres são choronas. Graças a deus que não me comovo só num filme ou com uma medalha de ouro. Comovo-me à mesa em cima do arroz e da toalha pingada com refeições que também foram alegria. Comovo-me com dores e momentos que não cabem em mim e sobram. Somos humanos quando podíamos ser uma barragem cheia sempre à beira de transbordar.

Não me bastavam as dores que já cá estavam, e o vírus que nos anda a derrubar há mais de dois anos trouxe-me uma carga insuportável de lágrimas do tal saco que estava por abrir. Agora chorem pra’ aí – disse eu aos meus olhos como se lhes desse ordem para não se guardarem só para a noite.

Também seria bom que comovermo-nos a torto e a direito deixasse de ser notícia. Que o presidente chorasse sem medo sobre o púlpito, o bombeiro sobre as chamas, a florista sobre a beleza das rosas, o cozinheiro salgasse o prato sem querer.

As lágrimas não nos enchem os olhos em vão.

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