Em vez de relvados, Lisboa pode ter miniflorestas no centro da cidade?

Era um relvado de 315 metros quadrados na Faculdade de Ciências de Lisboa. Agora, está a transformar-se num espaço biodiverso onde cabe a floresta inteira de Portugal e caminha para ser uma arma contra as alterações climáticas.

Foto
A FCULresta começou a ser plantada há um ano DR

Nas traseiras da Torre do Tombo, em Lisboa, no meio do campus universitário da Faculdade de Ciências (FCUL), há um espaço verde em revolução. “Para as pessoas o jardim comum é um jardim com relva. Quem passa por aqui acha que as plantas cresceram ao acaso, e que este espaço está ao abandono”, relata Filipa Pegarinhos, coordenadora do Gabinete de Segurança, Saúde e Sustentabilidade da faculdade.

Para António Alexandre, um dos coordenadores da FCULresta, a pequena floresta que ali nasceu há um ano, é fácil compreender o sucesso dos relvados: “O caótico, o não organizado, causa algum desconforto – embora nós tenhamos vindo como seres humanos disto, de um caos relativamente ordenado, que é a natureza”, explica o biólogo de 31 anos.

Hoje, acredita, é urgente transformar os “desertos verdes” que os relvados são – muito exigentes em água e pouco produtivos – em algo mais: “Não acho que devemos acabar com todos os relvados que existem em Lisboa ou nas cidades, porque têm um papel também do lazer que é importante. Mas há uma oportunidade para experimentar fazer coisas com esses espaços que poderão ter mais valor perante o cenário das alterações climáticas”, explica António Alexandre.

Uma floresta que é uma sala de aula

Foi o biólogo e investigador climático na FCUL David Avelar que um dia pensou: e se um relvado da faculdade se transformasse numa minifloresta? Um ano depois, David Avelar está sentado à sombra, dentro dela.

“Estamos agora aqui e ouço uma orquestra de insectos. Para mim é quase uma celebração, estão a celebrar a complexidade de cheiros, sons e comida que é muito pouco provável encontrarem noutros espaços”, explica.

Em Março de 2021 foram dados os primeiros passos da FCULresta, depois de o projecto 1Planet4All, coordenado em Portugal pela organização não-governamental VIDA, ter lançado o desafio à Faculdade de Ciências de Lisboa (FCUL) de criar um projecto com jovens que contribuísse para a acção climática.

Integrado no Laboratório Vivo para a Sustentabilidade da FCUL, o espaço de 315 metros quadrados que agora acolhe mais de 600 plantas autóctones, tornou-se uma sala de aula ao ar livre: “Já há muitos investigadores e professores a utilizar este espaço. Estamos a observar algo que aprendíamos dentro dos edifícios, nas salas, mas não tínhamos nenhum exemplo no campus”, relata David Avelar.

A floresta portuguesa e o método japonês Miyawaki

Um percurso pela FCULresta é quase uma viagem pela flora de Portugal. “Na verdade, Lisboa está num interface entre dois tipos de clima, o clima temperado atlântico e o clima temperado mediterrânico”, explica o biólogo António Alexandre.

i-video

Era um relvado de 315m2 na Faculdade de Ciências de Lisboa. Agora, está a transformar-se num espaço biodiverso onde cabe a floresta inteira de Portugal e caminha para ser uma arma contra as alterações climáticas.

Vera Moutinho

Jogando com a inclinação do terreno e a sua exposição solar, foi possível replicar o que se passa a nível nacional: na parte superior há uma vegetação típica do clima temperado mediterrânico, uma estação mais adaptada à seca, onde se encontram pascoinhas, estevas ou oliveiras. Na parte inferior, que recebe as escorrências das águas da chuva, mais húmida, vemos uma vegetação adaptada a um clima mais húmido, com mais sombra, como cerejeiras, sabugueiros e pilriteiros.

Um dos desafios foi adaptar ao clima mediterrânico o método criado pelo botânico japonês Akira Miyawaki, que serviu de inspiração para planear a FCULresta. “Não há nenhum exemplo em clima mediterrânico [desse método]” explica David Avelar. “Estamos numa faculdade de ciências que tem por matriz monitorizar a ciência, somos viciados em ciência e em testar a hipótese. Então vamos testar esta hipótese.”

O método criado pelo botânico japonês que faleceu em 2021, aos 93 anos sugere o uso de uma grande variedade de espécies nativas, idealmente 30 espécies ou mais, que são plantadas de forma a recriar as camadas de uma floresta natural.

As espécies autóctones são plantadas de forma muito densa, sem uso de químicos ou fertilizantes, para promover um crescimento mais rápido do que o habitual e atrair animais e plantas (além das inicialmente plantadas), absorver CO2, melhorar a qualidade do ar e ajudar na regulação térmica.

Por toda a Europa, o método Miyawaki tem vindo a ganhar adeptos que querem tornar espaços verdes dentro das cidades centros de biodiversidade e aliados no combate às alterações climáticas. Na Holanda, o grupo de conservação IVN Natuur Educatie já ajudou a plantar desde 2015 uma centena de miniflorestas urbanas.

Sabia que...

...nos períodos de maior calor, as árvores da FCULresta e as suas raízes vão funcionar como bombas de água, trazendo-a de zonas mais profundas do solo, para as zonas superficiais e para o ar, através da evapotranspiração.

“A ONU prevê que, em 2050, 60% da população esteja nas zonas urbanas. É muito importante que façamos alguma coisa e que sejam experiências, possam correr mal ou bem”, acredita António Alexandre. “Pôr as mãos na terra é cada vez mais importante.”

Bombas de sementes para semear a mudança

O envolvimento da comunidade na criação desta “placenta de floresta”, como lhe chama David Avelar, é uma das bases do projecto. Começando pelos jovens. “É a velha máxima de pensar global e agir local”, explica Ana Vaz, coordenadora do projecto Educação para Desenvolvimento e Cidadania Global 1Planet4All. “Tentamos sensibilizar os jovens entre os 15 e os 35 anos para os impactos das alterações climáticas um pouco por todo o mundo e, simultaneamente, promover o seu envolvimento em acções mais concretas e locais que possam contribuir para esta mudança que é necessária”, afirma.

Foto
Processo de fabrico das bombas de sementes, bolas de argila e composto misturadas com uma mistura de variedades de plantas biológicas produzidas pelos voluntários da FCULresta DR

Ao longo de uma semana de Março do ano passado, em plena pandemia da covid-19, 150 jovens de diferentes grupos e contextos universitários ajudaram a transformar o antigo relvado numa pequena floresta urbana que hoje é um laboratório vivo. Reciclaram manualmente 15 metros cúbicos de relva, adicionaram 30 metros cúbicos de composto, reutilizaram 300 sacos de micélio de cogumelo, plantaram 677 plantas de 46 espécies diferentes e lançaram algumas dezenas de bombas de sementes ao solo : bolas de argila e composto misturadas com diversas variedades de plantas biológicas produzidas pelos voluntários durante a semana e lançadas no último dia.

Os resultados têm sido positivos. Um ano depois, a substituição do relvado que necessitava de manutenção, fertilização e rega, permitiu criar um espaço que em breve não precisará de qualquer apoio de rega, poupando à Faculdade de Ciências cerca de 174 metros cúbicos de água todos os anos.

Foto
David Avelar, um dos coordenadores da FCULresta, junto ao charco temporário que vai contribuir para reter as águas naquele espaço Vera Moutinho

No espaço existe também um charco temporário que para além de atrair espécies únicas das regiões com clima mediterrânico, vai servir de bacia de retenção de água e ajudar a prevenir cheias na cidade. A monitorização constante do pequeno-grande ensaio que é a Fculresta vai permitir também perceber até que ponto o espaço contribui para melhorar a qualidade do ar, sequestrar carbono ou regular o clima.

“Em quanto é que a FCULresta vai diminuir a anomalia da temperatura? Sabemos que pode baixar a mortalidade e a morbilidade associada às ondas de calor”, explica David Avelar.

Daqui a 20 ou 30 anos, David Avelar espera poder estar de novo sentado dentro FCULresta, desta vez completamente engolido por ela, “sem conseguir ver a estrada” que está logo ali ao lado. “E saber que há outras florestas pela cidade seria muito gratificante”, acrescenta. “Para a acção climática”, remata António Alexandre, “o que importa é agir, experimentar e ver se funciona.”