Lei dos metadados é ilegal desde 2009 e PGR não tem poder para se queixar, diz Constitucional

Tribunal desfaz argumentação de Lucília Gago, de quem diz não ter legitimidade constitucional para o pedido que fez. Tribunais correm o risco de ser inundados por milhares de pedidos de nulidade de processos cujas condenações tenham sido baseadas essencialmente em prova obtida através de metadados.

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Nuno Ferreira Santos

O Tribunal Constitucional decidiu não tomar conhecimento do pedido da procuradora-geral da República que invocava a nulidade do acórdão que determinava a inconstitucionalidade da lei que estipula a conservação dos chamados metadados (os dados de base e de localização das chamadas telefónicas e ligações de internet) durante um ano para efeitos de investigação judicial. Ou seja, os juízes do Palácio Ratton recusam o pedido de nulidade de acórdão de Lucília Gago e recorrem a uma argumentação muito crítica para com a figura de topo do Ministério Público, de quem dizem que “carece de legitimidade processual e constitucional para a suscitar”.

Porém, além disso, os juízes esclarecem agora algo imprescindível: a declaração de inconstitucionalidade tem retroactividade até à entrada em vigor da lei, isto é, em 2009. O que significa que agora os tribunais poderão ser inundados por milhares de pedidos de nulidade de processos cujas condenações tenham sido baseadas essencialmente em prova obtida através de metadados.

O TC vinca que “a permissão de armazenamento dos dados em território subtraído à jurisdição de uma autoridade administrativa independente viola a obrigação de conservação num Estado-membro da União Europeia, implicando a inconstitucionalidade da norma quanto a todos os dados elencados no artigo 4.º”. Ou seja, só pelo facto de ser permitido que os dados das operadoras fiquem guardados num país fora da UE leva a que essa conservação viole a Constituição.

Num gesto inédito, Lucília Gago escreveu ao TC na segunda-feira, pedindo a nulidade do acórdão por “omissão de pronúncia sobre a fixação de limites aos efeitos da mesma, requerendo que seja declarada a eficácia apenas para o futuro” e por considerar “existir contradição entre a fundamentação e o juízo de inconstitucionalidade que recaiu” sobre um dos artigos da lei dos metadados, “em particular no que concerne à conservação dos dados de base e IP”.

O TC responde que só excepcionalmente (por segurança jurídica, equidade ou interesse público) estabelece um prazo diferente daquele que corresponde à entrada em vigor das normas consideradas inconstitucionais, mas realça que a provedora de Justiça, que suscitou a fiscalização sucessiva da lei que deu origem ao acórdão, também não pediu a não-retroactividade dos efeitos. E justifica ainda com o Tribunal de Justiça da UE que "se opõe” a que um tribunal nacional “limite no tempo os efeitos de uma declaração de invalidade” sobre a conservação dos metadados - como o PÚBLICO noticiou.

Depois há uma extensa crítica ao que o tribunal considera ser um abuso dos poderes da mais alta magistrada do Ministério Público. “Mais grave ainda, no que à inatendibilidade da pretensão deduzida diz respeito, é que não cabe à procuradora-geral da República — desde logo, por razões de ordem jurídico-constitucional de natureza material — suscitar incidentes pós-decisórios, em processos de fiscalização abstracta em que não seja sujeito processual.”

O TC considera serem “manifestamente improcedentes os argumentos invocados” por Lucília Gago, a quem lembra que tem apenas “legitimidade para pedir” ao tribunal a declaração de inconstitucionalidade e que é este que a aprecia.

“Não compete à PGR invocar a ‘promoção da defesa dos valores constitucionais do Estado de direito democrático’ para sustentar que um acórdão do Tribunal Constitucional ‘pode vulnerar tais interesses constitucionalmente protegidos’”, avisam os juízes do TC, vincando que a Constituição não reconhece “nem ao Ministério Público, nem a qualquer outro órgão uma função ou interesse extraprocessual” da defesa desses valores.

Que classificam mesmo o gesto de Lucília Gago de inconstitucional: “Daí a ilegitimidade constitucional da dedução de um incidente pós-decisório por parte de uma entidade – seja a Procuradora-Geral da República, seja qualquer outro dos órgãos ou entidades elencados no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição – que, embora legitimada a desencadear a fiscalização abstracta sucessiva, não seja sujeito no concreto processo em que o incidente é deduzido.”

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