Os factos e a narrativa - o poder da realidade

Pior do que ter uma doença é ser uma doença José Ortega y Gasset

A publicação do livro Saúde em Portugal – Pensar o Futuro, por Adalberto Campos Fernandes, é contribuição relevante para a discussão sobre o futuro da Saúde em Portugal. Esforço de vontade esclarecida trouxe visão reformadora assente em i) Perspectiva global - Saúde em todas as Políticas – com visão multidisciplinar e multiprofissional ii) Salvaguarda de valores fundamentais como direito à Saúde, equidade no acesso e affordability nos custos ao cidadão iii) Contrato Social na defesa da cidadania da pessoa doente, equilíbrio entre liberdade de escolha e responsabilidade do e perante o cidadão iv) Agenda para a Qualidade, consequente, que impõe cultura de avaliação permanente e apreciação objectiva da eficácia e efectividade dos serviços e v) Promoção de Convergência possível num contexto alargado de Sistema de Saúde mobilizador dos recursos privados e sociais, mantendo como referencial o Serviço Nacional de Saúde – SNS.

Analisemos com objectividade alguns factos.

A gratuidade tendencial é uma das bandeiras da organização da Saúde em Portugal. No entanto, os portugueses têm uma despesa directa – out of pocket – que é, percentualmente a terceira mais elevada na UE e corresponde a 27,5% do total de gastos na Saúde, sobretudo em cuidados ambulatórios e produtos farmacêuticos versus a média europeia de 15,8%. E a despesa pública per capita é francamente inferior à média europeia.

Cerca de 40% dos portugueses têm um seguro de saúde privado e 800.000 aproximadamente um seguro público indexado ao seu vencimento (ADSE+IASFA) enquanto mantêm cobertura pelo SNS. O Sistema de Saúde português é, portanto, misto, e não exclusivamente público como parece decorrer do discurso político que deliberadamente desvaloriza/ignora quer o sector privado como o social, e híbrido, porque assenta, em quase 50% da população, em dupla cobertura. Realidade que, tendo vantagens para o SNS, pela redução da sobrecarga assistencial sem agravamento da despesa pública, e para o cidadão, que pode sempre recorrer ao sector público em caso de complicações e /ou esgotamento dos plafonds dos seguros privados, tem desvantagens óbvias: desperdício e redundâncias de que a gestão ineficiente das carreiras profissionais, médicos e enfermeiros, com impacto negativo no SNS, é exemplo paradigmático.

O Inverno demográfico com redução da natalidade e aumento da esperança de vida, maior prevalência de doenças crónicas incapacitantes –situação comparável à media europeia – com maior necessidade de serviços de saúde para assegurar envelhecimento activo e com qualidade de vida - a insuficiência de cuidados públicos desde a saúde oral à saúde mental e cuidados continuados e paliativos e uma política pública de recursos humanos incapaz de reverter a drenagem dos profissionais do SNS são realidades que se impõem a uma narrativa reiteradamente optimista, feita de promessas não cumpridas.

A pandemia acentuou carências e atrasos muito relevantes - atrasos nas consultas e cirurgias, pletora repetida dos serviços de urgência por insuficiência de alternativa aos cidadãos, recuperação dos rastreios oncológicos - parece configurar-se a impossibilidade de o SNS, isoladamente, ultrapassar as suas disfunções e providenciar aos portugueses os serviços de saúde de que necessitam e merecem. A análise da despesa pública em Portugal, pré-pandemia já evidenciava a inadequação do financiamento dos cuidados continuados de 54 € per capita – 3% da despesa global – versus 471€ na média da UE, facto que se agravou, certamente, após a pandemia.

Poderá o sistema de saúde actual, com um SNS cronicamente subfinanciado, com défice financeiro operacional anual, insuficiência na disponibilização pública de verbas para os cuidados continuados e sem uma política de recursos humanos capaz de mobilizar e motivar os profissionais, enfrentar os desafios pós-pandemia num contexto de regressão económica potencial? E com um sector privado concorrencial e em franca expansão?

Há uma percepção pública de crise na saúde à qual parece aplicar-se a frase de Ortega y Gasset mencionada no início: pior do que ter uma doença é ser uma doença. No contexto das reformas sugeridas há uma mudança que se configurou essencial: a transformação do SNS, não em direcção executiva dependente do ministro da Saúde como recentemente foi sugerido em declarações oficiais, mas sim na organização de uma entidade pública autónoma - SNS Portugal – com autonomia, gestão profissional, separação de funções, entre prestador, financiador e regulador - uma questão que se discute há três décadas – financiamento plurianual indexado ao Valor em Saúde avaliado com objectividade, e uma direcção competente, nomeada pelo Governo por proposta do Ministério da Saúde e accountable (com responsabilidade) perante Governo e Parlamento, o que possibilitaria continuidade de acção e independência de vicissitudes político-partidárias.

Uma filosofia de Sistema de Saúde, potenciando recursos privados, sociais e públicos ao serviço dos cidadãos, requer uma visão global e abrangente e uma nova política para a Saúde não confinada ao sector público. De facto, a percepção pública é que os outros sectores tão relevantes na prestação de serviços de Saúde correm em pista própria, como se fossem outro país. E quando se menciona uma Agenda para a Qualidade como vector de afirmação do Sistema de Saúde, isso pressupõe uma cultura de avaliação independente e transversal a todo o Sistema, fomentadora de meritocracia e regras de governação clínica nas instituições de saúde. A transformação digital é um outro vector para melhor organização, articulação e compatibilização da informação de saúde dentro do Sistema global de Saúde e não paroquial, fechada sobre cada sector isolado, contribuindo para maior proximidade com os cidadãos, sem perda dos valores essenciais da Medicina humanista assente nos valores hipocráticos de dedicação, empatia, espírito de serviço e compaixão.

Karl Popper designou, no seu livro A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, a free competition of thought (livre concorrência das ideias) como elemento de progresso na sociedade. O caminho que teimosamente se tem seguido desde Outubro de 2018 de ensimesmamento, preconceito ideológico, apelo a mitos fundacionais do SNS, nomeadamente independência face ao sector privado (um mito, o SNS sempre precisou do sector privado e social desde o seu início), centralização excessiva no SNS de toda a política de Saúde, em detrimento dum pragmatismo inteligente e potenciador dos recursos, só pode ter um fim: insuficiência, empobrecimento e desqualificação do SNS que, de eixo estruturante de todo o Sistema, poderá vir a ser percebido como a doença da Saúde.

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