Francisco Assis: “Vejo no Governo uma grande vontade de concertação social”

Francisco Assis, o ex-dirigente socialista que recusou fazer parte dos órgãos do PS por discordar da “geringonça”, acredita que António Costa quer ser o “antídoto” para os perigos da maioria absoluta e que por isso estará empenhado num entendimento com os parceiros sociais.

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Francisco Assis foi eurodeputado do PS, mas saiu do Parlamento Europeu por não concordar com a "geringonça" formada na Assembleia da República Daniel Rocha

Francisco Assis foi reeleito presidente do Conselho Económico e Social (CES) com o melhor resultado de sempre. Em entrevista ao PÚBLICO e à Renascença (que será integralmente transmitida às 23h), o socialista fala das prioridades para o seu segundo mandato e traça como objectivo a reformulação do organismo, para o qual pede um papel mais activo na discussão pública e decisão política.

Disse que o CES deve ter “um papel mais activo na concertação social”. Como é que isso se concretiza?
Podemos dar um apoio técnico maior a todo o processo de concertação social. Somos um órgão que tem a incumbência de desenvolver pareceres, por solicitação da Assembleia da República (AR) ou do Governo — ou por iniciativa própria — sobre temas que consideremos importantes. E temos um plenário onde estão representados vários segmentos da sociedade civil portuguesa. Podemos perspectivar nesse plenário uma forma de organização da participação da sociedade civil na vida pública nacional e de organização de um espaço público democrático de debate no país.

Em que sentido?
Portugal é uma democracia representativa onde o centro da decisão está no Parlamento e no Governo, a par da dimensão presidencial. Não temos um modelo corporativo, felizmente. No CES temos um plenário com 77 membros, onde estão representados vários segmentos da sociedade civil portuguesa, desde os sectores ambientalistas, a sectores das questões ligadas às questões género, às autarquias, regiões, às ordens profissionais e os parceiros sociais.

À semelhança do que já vai ocorrendo um pouco na Europa, em particular na França, o CES pode ter um papel de promoção de discussões alargadas ao conjunto da sociedade, diferentes daquelas que se fazem no contexto parlamentar e que estão muito dominadas, por razões óbvias, pelo confronto político-partidário. O CES só tem sentido se se constituir num centro de produção de pensamento e capaz de absorver o pensamento que é produzido nas universidades, nas fundações e de garantir que esse pensamento é transportado para o debate político e público.

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Defendeu um estudo sobre a raspadinha. É esse género de estudos que quer promover?
Não, é mais do que isso. Acabou de ser editado e está à venda um parecer que elaborámos por iniciativa própria sobre a natalidade. Todo o Ocidente está confrontado com problemas sérios no plano demográfico e Portugal tem esse problema de forma muito premente. Ouvimos um conjunto diverso de personalidades e instituições que têm alguma reflexão sobre este tema, sobretudo nos planos económico e social. O projecto foi submetido a uma apreciação final do plenário do CES e entendemos que devíamos colocá-lo à disposição da sociedade. É um contributo que entendemos ser útil. Estamos também a trabalhar num estudo sobre a questão da produtividade.

Temos tido um crescimento económico débil. Durante muito tempo houve estagnação. Tivemos um ligeiro período em que a economia portuguesa cresceu um pouco acima da média europeia, fundamentalmente devido às principais economias europeias estarem a crescer abaixo do normal. Mas quer o crescimento nos últimos 20 anos, quer as próprias perspectivas de crescimento para os próximos anos não são entusiasmantes e não garantem a resolução dos principais problemas do país. Estamos também a trabalhar sobre a questão da saúde. Não podemos continuar a viver num debate estéril entre aqueles que fazem o elogio abstracto do Serviço Nacional de Saúde e aqueles que, de forma igualmente abstracta, se limitam a contestá-lo. Temos que passar para uma avaliação mais rigorosa, com base em dados empíricos, em informação real para perceber exactamente o que é que se está a passar.

Quanto tempo é que acha que é preciso para concluir essa reformulação?
O CES já está num processo de reformulação. Não sou um revolucionário, sou um reformista.

É para ficar resolvida neste mandato?
Muito antes do final deste mandato. Quando há um ano e meio fui convidado para desempenhar estas funções estava fora da vida política partidária. Saí do Parlamento Europeu por razões de ordem política porque discordei da opção da “geringonça” e entrei em conflito político aberto, claro e sério e frontal com a linha e com a direcção do meu partido. E, naturalmente, o PS entendeu que, naquelas circunstâncias, eu não estava em condições de assegurar a sua representação no Parlamento Europeu. Respeitei essa decisão e aceitei. Acatei. Não deixei de ser um militante do PS. Deixei de ser dirigente e de ter qualquer participação activa no PS. A minha vida partidária desapareceu. Não existe desde 2014.

Entretanto reaproximou-se.
Não exerço nenhuma função partidária, estou completamente fora disso. Do ponto de vista do pensamento não me afastei. As circunstâncias é que mudaram. Não fui eu que mudei. A “geringonça” é que nasceu, cresceu, morreu e, entretanto, permaneço vivo.

O tempo deu-lhe razão?
Não tenho essa pretensão do tempo ter-me dado razão ou não. As coisas são o que são. Há pessoas que estão completamente convencidas ainda hoje que a “geringonça” foi uma coisa extraordinária. Não é a minha opinião. Continuo a pensar que não foi. Nunca ninguém me irá convencer do contrário. Acho que não é uma discussão que faça qualquer sentido neste momento. É o passado, e um dia se avaliarão os méritos e deméritos e é provável que nem eu tenha inteira razão, nem tenham inteira razão aqueles que têm uma posição ou tiveram uma total adesão à “geringonça”. Curiosamente, alguns deles hoje estão mais críticos da “geringonça”.

Retomando a reformulação do CES.
O CES pode e deve ter um papel muito importante na vida nacional. Teve sempre figuras de primeiríssimo plano da nossa vida cívica, intelectual e política. Mas ao fim de 30 anos estamos em condições de fazer um balanço do que pode e deve ser o papel do CES. É preciso fazer reformas. É preciso reformar a composição do plenário, que não integra elementos ligados ao desporto ou ao combate à pobreza. Por outro lado, a administração consultiva do Estado está muito disseminada. Se a conseguirmos concentrar no CES ganhamos todos com isso. Fazemos uma economia séria de recursos humanos e financeiros. São coisas que têm que ser feitas com cuidado, com alguma ponderação.

Começaram as negociações da concertação social e o Governo já veio dizer que o acordo sobre rendimentos não será em Julho, mas no Outono. Acha que é possível chegar a essa altura com um acordo sólido?
Esperemos que se consiga concretizar. Vamos agora iniciar um processo negocial que vai decorrer nos próximos meses. Há duas questões fundamentais: a questão da competitividade da economia e a questão dos rendimentos. São dois problemas sérios e que estão absolutamente ligados. Temos um problema de competitividade que tem que ver com a questão do crescimento da economia. Nos últimos anos tivemos um longo período de estagnação, mesmo quando tivemos crescimento acima da média europeia. É preciso não ter nenhuma ilusão sobre isso.

E agora temos um cenário de inflação.
Este ano, aparentemente, vamos voltar a crescer acima da média europeia, mas as perspectivas para os anos seguintes também são medíocres. Não podemos ignorar isso. Os governos dirão sempre que vivem no melhor dos mundos e as oposições que dirão sempre que vivemos no pior dos mundos. E nós podemos não dizer: “Não, não andamos nem no melhor, nem no pior dos mundos”. Portugal tem coisas boas, tem coisas até extraordinárias, mas também tem muitas insuficiências e tem muitos problemas. Não sou daqueles que passa a vida a dizer somos um povo extraordinário, conseguimos coisas fantásticas, mas também não digo o contrário. E o nosso crescimento económico é medíocre. A variável fundamental aqui é a produtividade.

Os economistas, como sabem, dividem-se sobre se a inflação estrutural ou conjuntural. A verdade é que ela existe, está aí. É um factor novo que introduz aqui uma variável diferente e que não deixa de ter implicações no contexto económico e social.

E essa discussão em concertação social será mais fácil por ser um governo de maioria absoluta?
Não me quero pronunciar sobre isso. A vida política partidária é o que é. Tivemos uma solução diferente, um quadro parlamentar distinto. Agora temos outro. As maiorias absolutas têm aspectos positivos e aspectos negativos. Um aspecto positivo é a estabilidade política. Isso não se pode ignorar.

Temos hoje um horizonte de quatro anos e meio de governação do PS, com o mesmo primeiro-ministro. E, como o primeiro-ministro, como nós sabemos, gosta pouco de mudar ministros e temos ministros a permanecer durante muito tempo nas suas funções, o que significa que temos, de facto, um horizonte de grande estabilidade para os próximos anos.

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Vejo no Governo uma grande vontade de valorização da concertação social. Estou optimista em relação a isso. Acho que há uma vontade clara da parte do Governo de valorizar a concertação social. O dr. António Costa deixou claro desde o dia em que obteve maioria absoluta que tinha noção que as maiorias absolutas podem ser perigosas. E, nesse sentido, acho que pode ser o primeiro antídoto aos perigos da própria maioria absoluta. Até aqui, pelo que eu tenho visto, tem sido. Tem valorizado os elementos de contrapeso, nomeadamente a concertação social, como uma instância independente que não está aqui ao serviço de ninguém, nem do Governo nas posições de ninguém, nem de nenhuma agenda política de ninguém.

E também preventiva de alguma contestação social?
Não lhe posso garantir isso porque evidentemente vivemos numa democracia. É natural que num período em que haja uma inflação significativa, incertezas e perda de poder de compra — porque já está a haver — possa existir alguma contestação social. Também temos que saber lidar com isso. Não há nenhum drama.

Numa maioria absoluta não será diferente em relação a uma maioria relativa?
Não confundamos a maioria absoluta com um poder absoluto. Nem o PS teria essa pretensão nem no caso de a ter, o país permitiria uma coisa dessas. Não há nenhum risco nesse domínio. Quais são os riscos? Primeiro, a tendência para ocupar excessivamente o aparelho de Estado; segundo uma tendência para desvalorizar completamente o papel das oposições nos vários segmentos da sociedade portuguesa e em terceiro a tendência para fazer uma idolatria do chefe.

E não vê nada disso.
Não acho. Esse risco existe numa maioria sempre absoluta, quer seja do PS ou do PSD. O que é que contraria isso? Uma cultura democrática e que eu acho que é hoje bastante mais forte do que era há alguns anos atrás. Segundo a própria dimensão democrática, o PS não é um partido em que as pessoas não sejam capazes de desenvolver um sentido crítico. Eu próprio sou a expressão disso mesmo. É certo que um pouco isolado, mas a verdade é que sou a expressão disso mesmo.

Nunca fui objecto de uma perseguição especial. A prova é que sou presidente do CES, portanto, não me considero perseguido político. E, em terceiro lugar, porque também não acho que seja isso que esteja na mente do dr. Costa. Como todas as pessoas tem virtudes e defeitos, mas evidentemente que não vejo nenhuma vontade despótica de se instalar no país. Pelo contrário, acho que é uma pessoa disponível permanentemente para o diálogo com os diferentes sectores da sociedade portuguesa. E nessa perspectiva, julgo que esta maioria absoluta pode. Também é preciso que os partidos da oposição tenham um papel activo. É tão digno estar na oposição como estar no poder.

E a oposição tem tido esse papel?
O PSD é um partido fundamental e está num processo de transição. É um grande partido. Sou do tempo em que o PS achava que estava condenado a estar na oposição para sempre. Ao fim de oito, nove, dez anos de cavaquismo achávamos que estávamos condenados à oposição e subitamente regressamos ao poder e veja o que aconteceu depois disso.

É o que pode acontecer com o pós-Costa?
Pode sempre acontecer. A democracia tem essa vantagem, a imprevisibilidade e a indeterminação. Acho que o PSD é um partido fundamental na nossa vida democrática e é muito importante um PSD forte. Estou certo que depois deste processo de escolha do novo líder é isso que vai acontecer sem prejuízo das outras oposições que existem no país que têm de se manifestar. Não acho nada que seja um período dominado pela maioria absoluta do PS. Continuamos a ter um Parlamento activo, uma sociedade civil vigilante e um país livre.

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