El Salvador condena mais uma mulher por aborto espontâneo a uma longa pena de prisão

Quando ‘Esme’ perdeu o filho, perdeu também a liberdade. Foi agora condenada a 30 anos de prisão. É a 181ª mulher a ser condenada pelo “crime” de aborto espontâneo no país nos últimos 20 anos.

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'Kenya', também condenada a uma longa pena de prisão por um aborto espontâneo, foi libertada em Fevereiro Jessica Orellana/REUTERS

Em El Salvador, um aborto é sempre um “homicídio agravado”. Sem excepção. Violação, gravidez de menores ou razões de saúde não são justificações para uma mulher interromper medicamente a gestação. Nem mesmo quando o aborto é espontâneo. ‘Esme’, nome fictício usado para proteger a sua identidade, é o mais recente exemplo da mão dura da Justiça nestes casos: 30 anos de prisão por aborto espontâneo.

Em Outubro de 2019, Esme, de 28 anos, estava sozinha em casa, no meio do campo, quando sofreu uma emergência obstétrica. Procurou ajuda num hospital público, mas o feto já estava morto e em vez de receber ajuda e apoio pela perda do seu filho em gestação, os médicos denunciaram o seu caso às autoridades e acabou detida. Esta segunda-feira, um juiz considerou-a culpada por homicídio agravado, condenando-a a 30 anos de prisão.

Se a gravidez já é um risco por si só, em El Salvador esse risco agrava-se com o perigo que pende sobre a mulher durante os nove meses: se perder o filho a culpa será sempre dela por não ter feito o suficiente para o salvar. E não se trata de uma lei que vem do passado e teima em manter-se no presente apesar dos esforços. A base legal para condenar uma mulher por aborto espontâneo vem da revisão constitucional de 1998, quando se colocou sob protecção “a vida humana desde a concepção”.

Desde essa alteração constitucional, 181 mulheres já foram condenadas neste país latino-americano a penas de prisão por abortos espontâneos. Os dados são do Colectivo Feminista para o Desenvolvimento Local (CFDL) que desde há anos luta politicamente para reverter o actual panorama de criminalização das interrupções involuntárias da gravidez e juridicamente para encurtar as longas penas a que são condenadas as mulheres. Segundo a Agrupação Cidadã pela Despenalização do Aborto (ACDA), 64 dessas mulheres condenadas a longas penas de prisão efectiva foram libertadas.

Em Fevereiro, “Elsy”, outro nome fictício, voltou a casa. Foi assim que a CFDL e outras organizações e activistas da sociedade civil celebraram a sua libertação, depois de passar dez anos e sete meses na prisão por ter sofrido um aborto espontâneo. Tal como Esme, Elsy tinha 28 anos quando a sua gravidez correu mal e a sua vida mudou para sempre.

O apoio jurídico e o empenho da CFDL fizeram com que Elsy fosse a quinta mulher presa pela mesma causa a ser libertada desde Dezembro. ‘Karen’, ‘Kathy’ e ‘Evelyn’ na véspera de Natal e ‘Kenya’ a 17 de Janeiro.

A condenação de Esme, a primeira em sete anos, é o reverso da corrente para as mulheres salvadorenhas e para o esforço da CFDL. “Foi um duro golpe”, disse à France 24 a presidente da organização, Morena Herrera. “Primeiro para ela e a sua família. Depois para a nossa luta. Estamos a trabalhar na perspectiva de ver El Salvador fechar esse capítulo da criminalização das mulheres em emergência obstetrícia, mas esta sentença marca um retrocesso.”

“Esta sentença é uma farsa de justiça”, disse em comunicado, na quarta-feira, a directora para as Américas da Amnistia Internacional, Erika Guevara Rosa. “Sofrer uma emergência obstétrica é devastador para qualquer pessoa e o papel do Estado quando isto acontece deve ser o de oferecer acompanhamento e contenção para aliviar este sofrimento e, não, agravá-lo, ao criminalizar as mulheres.”

Revisão constitucional

Há precisamente um ano, em Maio de 2021, o Governo do Presidente Nayib Bukele, que chegou ao poder em 2019, apresentou uma proposta de revisão constitucional, onde se incluía a descriminalização do aborto nos casos de risco de vida para as mulheres, de malformação do feto que torne inviável a vida fora do útero e em casos de violação sexual.

Mas, em Setembro, o executivo recebeu uma petição de 75 organizações conservadoras que pediam um travão à reforma por “abrir portas ao aborto, à eutanásia, à agenda gay e ameaçar a liberdade religiosa no país”, ao mesmo tempo que considera as medidas “atentatórias do direito à vida, à família e liberdade, por imporem uma agenda ideológica contrária aos valores a à identidade cultural dos salvadorenhos”.

Nesse mesmo mês, a poderosa Igreja Católica também se pronunciou negativamente em relação ao processo. “Numa questão de humanismo, além de cristãos, estamos absolutamente a favor da vida desde a sua concepção até à sua morte natural”, referiu a Conferência Episcopal de El Salvador em comunicado. “Não se pode aceitar uma reforma constitucional que estabeleça as condições para a legalização do aborto.”

Para a Igreja Católica salvadorenha, há artigos “pétreos” na Constituição, ou seja, que “não podem ser reformados” e “devem conservar-se como tais” por atentarem contra os valores democráticos: “A Constituição, em conformidade com os valores e princípios da nossa sociedade, deverá defender o bem da vida e da família.”

“Esta condenação é a primeira que se produz durante o Governo de Nayib Bukele, que tinha prometido pôr fim à perseguição sistemática das mulheres que enfrentam emergências médicas durante as suas gravidezes”, lamentou a ACDA, citada pela Efe.

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