Sobre a dificuldade de aceitarmos as coisas boas

Há gerações e gerações que nos habituámos, treinámos e aperfeiçoámos a arte de dar. De cuidar. E de tornarmos as preocupações dos outros, nossas.

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@designer.sandraf

Ana,

Queria falar-te da dificuldade que sentimos em aceitar serenamente as coisas boas que os outros nos dão. Não sei bem explicar, mas este fim-de-semana em que vocês todos se juntaram à minha volta para tornarem o meu dia de anos tão especial, fiquei tão grata e tão feliz, mas…. Desejosa de deixar rapidamente de ser o centro das atenções. De não vos “obrigar” a sair mais tempo das vossas vidas, sentindo que não podia “compensar” nunca o vosso esforço de terem vindo de tão longe só por causa de mim.

Não tem nada a ver com ingratidão, muito pelo contrário — é tanta gratidão que quase me afoga.

É estranho, porque eu era aquela criança que avisava toda a gente — e toda a gente era desde o senhor da mercearia até ao polícia da esquina — de que ia fazer anos com várias semanas de antecedência… E, de certa forma, continuo a ser porque fui eu que organizei está excursão a Londres, onde finalmente nos podemos encontrar todos.

Mas também era a criança insuportável que chegava sempre ao fim da festa em lágrimas. Sempre achei que era por ser uma criança insatisfeita (género que detesto) ou que estabelecia expectativas demasiado altas, mas hoje pensei que talvez não fosse isso, talvez fosse este mesmo sentimento a que, na realidade, não consigo dar nome.

Talvez tu consigas…


Querida Mãe,

Parabéns!!!

Sobre a dificuldade em receber acho que é bastante geral nas mulheres. Há gerações e gerações que nos habituámos, treinámos e aperfeiçoámos a arte de dar. De cuidar. E de tornarmos as preocupações dos outros, nossas. Não é algo totalmente altruísta, porque com isso vem também uma recompensa de sentir a gratidão dos outros e de nos sentirmos mais em controlo.

Arrisco até dizer que, lá misturado, há uma camada de omnipotência: acreditamos que conseguimos (se nos empenharmos) resolver os problemas dos outros. Ah e, claro, ganhamos pontos extra (só na nossa cabeça, obviamente) se conseguirmos adivinhar e antecipar o que os outros estão a sentir e o que querem.

Ufa, visto de fora percebemos o quão cansativo isto é! E mais, muito mais vezes do que achamos, enganamo-nos! Resolvemos problemas que não existem (alguns até criados por nós), oferecemos soluções que o outro não quer e ficamos magoadas quando não as aceitam ou não mostram a devida gratidão.

Habituadas a isto, receber torna-se mesmo desafiante. Começamos a consultar na nossa mente o caderninho do “deve e haver” e só aceitamos quando achamos que já nos devem bastante!

O pior deste modo de vida é que habituamo-nos a depender desse agradecimento constante, criamos a crença, dentro de nós, que as pessoas gostam de nós porque fazemos aquelas coisas. Estamos certas que se as deixássemos de fazer, as pessoas deixavam de nos amar. É uma crença dificílima de destruir — e nem sequer queremos arriscar tentar — e quando o fazemos, mesmo que subtilmente, temos uma voz interna tão forte (mais a culpa católica) a jurar que somos pessoas horríveis.

De repente, um dia ser só sobre nós parece-nos intolerável. Perdemos todos os nossos mecanismos de socialização, ficamos envergonhados, nem sabemos para onde olhar quando não estamos a “servir”. Com a ansiedade em alta começamos a interpretar um olhar de cansaço como aborrecimento, a imaginar que tudo está a demorar e as pessoas estão a ficar impacientes. Tudo isso cansa e tira-nos do presente. A boa notícia é que vai ficando melhor à medida que se treina mais!

Em relação a chorar... Damos má fama ao choro — associamo-lo sempre à tristeza — mas é absurdo. Todo o stress, as emoções fortes e os picos de adrenalina alteram o corpo, criam tensão. A forma mais eficaz do corpo expulsar tudo isso é o choro. Deixemos as lágrimas correr. Sem conversas ou interpretações. Só um abraço. Os ingleses têm uma palavra que eu adoro e que acho que se aplica: overwhelmed. O corpo está a transbordar de todas as emoções boas e más e quando transborda sai em lágrimas, a seguir sentimo-nos infinitamente melhor e curiosamente voltamos a ser capazes de lembrar as coisas boas. E essas ficam!

Beijinhos!


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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