Quem vive nas cidades tem um pensamento ecológico mais pobre?

Estudo associa urbanização a um pensamento mais simplista sobre os ecossistemas, assim como a uma menor capacidade de agir em prol do ambiente. É o problema a que se chama “síndrome do conhecimento urbanizado”.

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O estudo envolveu mais de 1350 residentes da costa Leste dos Estados Unidos Stephanie Keith/Reuters

Será que o facto de morarmos numa cidade, cercados de prédios e estruturas cimentadas, condiciona a forma como pensamos na natureza? Um estudo recente publicado na revista científica npj Urban Sustainability sugere que sim. Ao analisarem os dados obtidos num inquérito a mais de 1350 habitantes da Costa Leste dos Estados Unidos, cientistas do Instituto de Padrões e Tecnologia norte-americano (NIST, na sigla em inglês) perceberam que os inquiridos que moravam em centros urbanos apresentavam uma visão menos complexa dos ecossistemas costeiros do que os participantes que residiam em áreas distantes dos centros. O estudo revelou ainda uma menor propensão das populações urbanas para abraçar causas ambientais.

Payam Aminpour, bolseiro de pós-doutoramento do NIST e autor principal do estudo, afirma que o trabalho fornece pistas para um problema a que chamam “síndrome do conhecimento urbanizado”. Este fenómeno pode ser prejudicial para os ecossistemas naturais – dos quais as pessoas fazem parte – e dificultar a resiliência de uma comunidade face a desastres. “Aventamos a hipótese de que a urbanização não está apenas a ter impacto na dimensão ecológica do sistema, mas também a dimensão social do sistema, o que pode, por sua vez, fazer com que as pessoas se desvinculem do comportamento ambiental positivo. É uma espécie de efeito bola de neve”, afirma Aminpour.

O inquérito focou-se em municípios costeiros de áreas metropolitanas pertencentes a oito estados norte-americanos. Cada um dos concelhos apresentava litorais com diferentes concentrações de estradas, paredões e outras infra-estruturas no litoral. No esquema de classificação urbano-rural de seis níveis do Centro Nacional de Estatísticas de Saúde dos Estados Unidos, os entrevistados residiam sobretudo nos três mais urbanos, percorrendo um espectro que vai centro da cidade aos subúrbios.

A elaboração da lista de perguntas tinha como objectivo compreender a demografia dos inquiridos, a forma como estes viam os ecossistemas e, por fim, se tinham ou não participado numa lista de iniciativas associadas a preocupações ecológicas. Estas actividades incluíam, por exemplo, votar com base na visão ambiental dos candidatos ou contribuir para organizações dedicadas a causas ecológicas.

Como saber como alguém pensa?

Para conseguir compreender como os inquiridos pensavam sobre os ecossistemas, a equipa de Aminpour usou uma técnica chamada “mapeamento cognitivo difuso”. Esta ferramenta das ciências cognitivas permitiu construir representações visuais das percepções de cada entrevistado recorrendo a dados do inquérito. Estes mapas do pensamento indicaram, num gráfico, como cada inquirido estabelece relações causais entre os diferentes elementos da natureza. As ligações podem ter associações causais fracas, médias ou fortes.

“Quando as pessoas pensam sobre um problema ou fenómeno, elas desenvolvem um modelo mental, que não deixa de ser um raciocínio causal sobre como as coisas estão relacionadas. Peguemos no exemplo de tomar o pequeno-almoço. É possível pensar, por exemplo, que esta refeição aumenta a produtividade no trabalho, ou ainda que o consumo de café pode aumentar a ansiedade, e que a ansiedade diminui a produtividade. O mapeamento cognitivo difuso é uma técnica que permite aos cientistas estudar os modelos mentais partilhados pelos entrevistados e criar uma representação visual [da linha de pensamento daquela pessoa]”, explicou ao PÚBLICO Payam Aminpour.

Os cientistas passaram muito tempo a olhar para os quase 1400 “mapas mentais” produzidos a partir das conversas com os entrevistados. O objectivo era tentar encontrar padrões em meio a tanta informação. Acabaram por perceber que havia dois modelos de percepção: um deles mais linear e outro mais complexo. A análise dos dados do inquérito foi feita não só com recurso a técnicas das ciências cognitivas, mas também a ferramentas estatísticas.

Parte dos entrevistados forneceu respostas nas quais as relações tendiam a ir numa só direcção, ou seja, sugeriam um modelo de pensamento linear. Nesse padrão, o entrevistado tem a percepção de que a pesca predatória é algo negativo só para os peixes. Ou o inquirido vê o paredão como uma estrutura costeira cuja finalidade é evitar a erosão da costa e ponto final – ou seja, sem nenhum outro impacto, positivo ou negativo, para os demais elementos que compõem aquele ecossistema.

Os mapas de outros moradores mostraram relações mais complexas, de mão dupla. Isto sugere que estes entrevistados pensam o ambiente como um sistema. No pensamento sistémico, os habitantes são capazes de perceber que um muro junto ao mar pode garantir a integridade da linha costeira, mas, simultaneamente, pode alterar a forma como a água flui e acelerar a erosão. E que pescar excessivamente também afecta, a médio prazo, uma actividade económica ou os hábitos alimentares locais.

Muda-se o endereço, mudam os pensamentos?

Então, à luz das conclusões deste estudo, poderíamos aventar a hipótese de pessoas que pensam o ambiente de forma linear poderem, se mudarem para longe do centro urbano, desenvolver uma forma sistémica de olhar para a natureza? Por outras palavras, quem muda código de postal vai mudar, após um dado período, de forma de pensar? “Não temos uma resposta clara para essa pergunta. Não sabemos quanto tempo leva para alguém desenvolver o pensamento sistémico. Na nossa amostra, a média de residência é de cerca de cinco anos. O que podemos dizer é que existe uma correlação entre o local de residência e a forma de pensar sobre o ambiente”, afirma Payam Aminpour.

Jennifer Helgeson, co-autora do estudo, disse ao PÚBLICO que testar a hipótese colocada acima ajudaria a compreender melhor como a “síndrome de conhecimento urbanizado” está correlacionada com zonas mais densas e construídas. E a perceber se mudar para áreas menos urbanas pode ser um “antídoto” contra o pensamento linear. “Embora vejamos aqui uma forte correlação entre uma coisa e outra, não podemos estabelecer uma relação de causalidade entre a síndrome de pensamento urbanizado e o código postal da pessoa. Sem estudos adicionais, não podemos saber se há aqui algum factor escondido que leva esta associação a emergir dos dados”, alerta Jennifer Helgeson.

A investigação nasceu como parte de um programa do NIST dedicado à resiliência de comunidades em contexto de desastres. Segundo a definição do NIST, resiliência de uma comunidade traduz-se na “capacidade de se preparar para perigos antecipados, adaptar-se a condições em mudança e resistir e recuperar-se rapidamente de interrupções”. A equipa queria compreender melhor o que condiciona as decisões das pessoas quando são instadas a adoptar medidas de resiliência e adaptação em áreas urbanas.

Uma das formas para “tratar” a síndrome do conhecimento urbanizado é apostar em programas robustos de educação ambiental, incluindo viagens e estadas em zonas naturais, capazes de fomentar modelos de pensamento mais sistémicos (ou seja, mais diversos, menos lineares). “Estes programas podem ser integrados em todos os níveis de ensino. Podem incluir incentivos para viajar para áreas menos urbanas ou para passar tempo nessas paisagens. Estas experiências também podem fazer parte da paisagem através do aumento do número de jardins urbanos e de outras soluções baseadas na natureza – criação de paredes e telhados verdes, zonas verdes multiusos em áreas de várzea, linhas costeiras naturais (em vez de paredões). É fundamental, contudo, garantir acesso equitativo a todos os habitantes”, recomenda a co-autora, também cientista do NIST.

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