Incêndios em áreas protegidas dispararam com a pandemia

Estudo publicado na revista Nature Sustainability indica que taxas de incêndios nas zonas de conservação em Madagáscar subiram mais de 200% nos meses após o primeiro confinamento geral — que levou a que as áreas protegidas deixassem de ser vigiadas.

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Este estudo científico é o primeiro a tentar entender os efeitos, directos ou indirectos, da pandemia em áreas protegidas REUTERS/Alexandros Avramidis

Com o início da pandemia de covid-19 e os primeiros confinamentos, as áreas de conservação em Madagáscar deixaram, durante alguns meses, de ser vigiadas. Isso terá motivado um aumento de incêndios “dramático”, apontam os autores de um estudo publicado esta quinta-feira na revista Nature Sustainability.

Uma equipa internacional de cientistas de duas universidades, a de Helsínquia (Finlândia) e a de Cambridge (Reino Unido), serviu-se de dados históricos (e contemporâneos) sobre incêndios e clima para tentar perceber como é uma época de incêndios “normal” em Madagáscar. A partir desse trabalho, foi elaborada, para todos os meses entre 2012 e 2020, uma previsão das taxas de área ardida nas zonas de conservação da nação insular.

Posteriormente, os investigadores analisaram imagens capturadas por satélites da NASA que lhes permitiram detectar “anomalias térmicas”. Assim, foram contados os incêndios que realmente ocorreram e identificados os períodos em que o número de fogos foi anormalmente elevado.

O que diz o estudo? Quando os primeiros confinamentos de 2020 levaram a que o trabalho de gestão das áreas protegidas de Madagáscar fosse posto em stand-by, o número de incêndios disparou. Mais especificamente, subiu 209% em Março, 223% em Abril, 78% em Maio, 248% em Junho e 76% em Julho. Os números regressaram aos valores “normais”, ou previstos, quando se decidiu o desconfinamento e as zonas de conservação voltaram a ser vigiadas.​

“A disrupção causada pela covid-19 demonstra de forma clara o impacto dramático que interrupções à gestão de áreas protegidas podem ter nos habitat”, sintetiza Andrew Balmford, professor de Ciências da Conservação na Universidade de Cambridge e um dos autores do estudo.

“Ao longo dos últimos 20 anos”, salienta o especialista, os períodos marcados por uma quantidade anormalmente elevada de incêndios nas áreas protegidas de Madagáscar ficaram limitados a “blocos ocasionais de um ou dois meses”. “Quando, em Março de 2020, as pessoas foram retiradas das zonas de conservação, as taxas de incêndios dispararam — e mantiveram-se ferozes durante cinco meses, uma janela temporal sem precedentes”, assinala.

Estudo pioneiro

Este estudo científico é o primeiro a tentar entender os efeitos, directos ou indirectos, da pandemia em áreas protegidas. Os autores defendem que a gestão das zonas de conservação deve ser encarada, por governos locais, nacionais e mundiais, como um “serviço essencial”. Argumentam que as áreas protegidas necessitam de ser vigiadas de forma constante — e que nem em períodos de crises sanitárias as equipas responsáveis por esse trabalho devem ser retiradas do terreno.

Os investigadores lançam, também, um repto: na segunda fase da Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade — evento que, devido à pandemia, tem sido adiado de forma sucessiva —, há que se discutir muito seriamente o tema da gestão das zonas de conservação. Falar-se só sobre expandir-se a área por elas abrangida, observa a finlandesa Johanna Eklund, autora principal do relatório, não é suficiente.

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A fossa, o maior mamífero carnívoro em Madagáscar, é um animal endémico da ilha REUTERS/Baz Ratner

Conhecida pela variedade dos seus ecossistemas, a nação insular de Madagáscar possui uma biodiversidade única. É lá (e só lá) que residem os famosos lémures, mas não só: cerca de 90% de todas as espécies de animais e plantas que se podem encontrar ao largo do território são endémicas da ilha. A destruição dos habitats está, no entanto, a ameaçar muitas dessas espécies — algumas das quais já estão extintas.​

Insistindo na ideia de que nunca em anos recentes as áreas protegidas de Madagáscar tinham ardido de forma tão expressiva, os investigadores dizem que houve apenas dois períodos minimamente comparáveis, em 2013 e 2018, anos de campanhas eleitorais — e, portanto, de instabilidade política e tensão social. Mas a taxa de incêndios no mês mais crítico dessa janela temporal subiu “só” 134%. É uma percentagem avassaladora, mas não se aproxima do aumento de 248% registado em Junho de 2020.

Os investigadores não sabem identificar as causas concretas do aumento de fogos, mas Johanna Eklund, que vem a realizar trabalhos de pesquisa e investigação em Madagáscar há quase uma década, diz que a crise financeira agudizada pela crise pandémica poderá ter sido determinante.

“Madagáscar tem taxas de pobreza muito altas — e sempre se debateu com uma espécie de conflito entre a subsistência de comunidades vulneráveis e a protecção da biodiversidade”, refere a autora, que especula: pode ser que algumas pessoas, em condições especialmente precárias, tenham aproveitado o período de confinamento para “invadir” áreas protegidas e, nelas, realizar queimadas para fazer trabalhos agrícolas.

Tuuli Toivonen, um dos co-autores, alude ao facto de terem sido usadas imagens capturadas por satélites da NASA para afirmar que este estudo mostra como dados recolhidos de forma remota (e contínua) podem ajudar a entender “o que está a acontecer a ecossistemas espalhados por todo o mundo”. Tais dados, refere ainda, podem, igualmente, ajudar governos a implementar medidas de protecção e mitigação mais eficazes.

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