Com(decoro)

Não se trata de exigir a santidade ou a perfeição, mas apenas que a imagem do possível condecorado não esteja manchada de forma indelével por acções censuráveis.

A recente polémica a propósito da condecoração de algumas figuras envolvidas no 25 de Abril é um bom pretexto para reflectir sobre os critérios de condecoração. Não no sentido dos critérios para a condecoração A ou B - pois esses estão legalmente definidos e, valha a verdade, são tão amplos que permitem que primeiro se defina quem se quer condecorar e depois encontrar um feito que seja condecorável -, mas no sentido dos requisitos pessoais da pessoa condecorabile. Esta não é uma questão inútil. Numa qualquer sociedade, as simbologias contam. E é justo que se espere dos distinguidos da nação um comportamento condigno com as insígnias que ostentam.

A opção de fundo de condecorar uma pessoa terá um cunho subjectivo, político (o que, note-se, não é o mesmo do que partidário), mas nem por isso deverá esta escolha ser desprovida de critérios. Se é certo que condecorar alguém não equivale a elevá-lo à santidade, é também certo que implica destacá-lo acima dos demais cidadãos e, portanto, dizer que aquela pessoa é um exemplo para os demais a algum título. Para este efeito, um critério que parece razoável para a atribuição de uma qualquer condecoração é a prática de feitos socialmente relevantes, com impacto na comunidade, sendo que o concreto feito determinará depois se o autor deve condecorado com a Ordem de Cristo, a Ordem da Liberdade ou a Ordem do Infante D. Henrique. Este é o critério que poderemos chamar positivo: a prática de feitos de relevo.

Há, no entanto, um segundo critério que deve ser observado, e a que poderemos chamar negativo: alguém a condecorar não deve ter praticado acções que nos levem a pôr em causa a sua natureza de exemplo para os demais. Para cumprimento deste critério não se deve exigir, como já se referiu, a santidade ou a perfeição. Apenas se trata de exigir que a imagem do possível condecorado não esteja manchada de forma indelével por acções censuráveis que façam esquecer os seus feitos meritórios. Não se deve exigir, naturalmente, que se esquadrinhe toda a vida da pessoa à procura de potenciais erros. Mas não se deve ignorar aquilo que se conhece, de relevo, no domínio da vida pública da pessoa.

À luz destes dois critérios, penso ser claro que em Portugal se condecora mal (não sei se se condecora muito, como recentemente sugeriu no Expresso Miguel Sousa Tavares, mas parece-me que a questão não é tanto quantitativa, mas qualitativa).

No domínio dos feitos, há uma tendência para confundir serviços em prol da comunidade ou do país com serviços prestados aos próprios condecorados e que têm efeitos positivos no país. Basta ver a quantidade de empresários condecorados, cujo único feito foi enriquecer. Note-se que não há aqui qualquer censura ao enriquecimento, nem ausência de reconhecimento de que esse processo teve efeitos positivos na comunidade. Mas faltam, nestas circunstâncias, o altruísmo ou a abnegação subjacentes aos feitos condecoráveis. Há excepções, claro, e há empresários cujas empresas, crescendo e enriquecendo-os, desempenham funções sociais e altruístas dignas de destaque. Mas é duvidoso que seja esse o caso em geral. Veja-se, por exemplo, que Henrique Granadeiro foi condecorado com a Grã-cruz da Ordem de Cristo, que Zeinal Bava foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito e que José Berardo recebeu a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

Mas é talvez no critério negativo que a recente polémica é mais útil e reveladora da falta de critério. Se, em princípio, o envolvimento de Spínola, Vasco Gonçalves e Rosa Coutinho no 25 de Abril é um feito, em abstracto, que pode justificar uma condecoração, é preciso chamar à colação o critério negativo para analisar se os condecorandos praticaram feitos que ponham em causa a sua susceptibilidade de serem exemplos para a sociedade. Ora, parece não haver dúvidas que em todos os casos há motivos de sobra para a não condecoração de qualquer um deles: no caso de Spínola, o seu papel no 11 de Março; no caso de Vasco Gonçalves, a tentativa de sovietização do país, com nacionalizações e ocupações; no caso de Rosa Coutinho, o seu papel numa descolonização apressada, com a criação de um vazio de poder que degenerou na guerra civil em Angola. Poder-se-ia compreender que as pessoas em causa tivessem sido agraciadas logo após o 25 de Abril, quando ainda não se conheciam os respectivos comportamentos negativos. Hoje, à luz dos factos históricos, é de difícil compreensão.

À luz da falta de critério condecorativo, é lícito que qualquer cidadão se questione: “se isto é um exemplo...”

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