Para Giles Coren, a comida portuguesa já não é “a pior do mundo”. É “a melhor”

Há sete anos, o britânico Coren pôs meio Portugal a atacá-lo por causa de uma... crítica gastronómica. O caso deu-se com um restaurante de Nuno Mendes. Agora, foi a medo provar o novo espaço do chef português em Londres. Entram plumas, arroz de marisco e abade de Priscos, tudo polvilhado com humor e amor num artigo do The Times.

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Uma das ilustrações do Lisboeta para promoção dos seus menus Lisboeta

“A comida nos hotéis portugueses nunca é portuguesa. As pessoas estão de férias. Não seria justo.” Melhor dizendo, “a comida portuguesa é a pior do mundo”. Assim (e mais) escrevia Giles Coren no The Times em 2015, numa crítica gastronómica ao restaurante Taberna do Mercado, obra do chef português Nuno Mendes em Londres. A crítica, uma tentativa, para muitos falhada, de humor britânico, não foi recebida com gargalhadas nem em Portugal nem em Inglaterra: “Houve cartas para o The Times, chamadas da embaixada, questões no Parlamento, toneladas de e-mails de ódio...” – é o próprio Coren que recorda o momento num novo texto publicado esta quarta-feira naquele jornal britânico, agora a propósito do novo restaurante de Nuno Mendes, o Lisboeta. “Que idiota”, escreve Coren sobre si próprio, entre laivos de auto-humor, admissão de falha e mudando por completo o tom em relação à cozinha de Mendes, que passa a génio.

No texto, Coren começa por dizer que é “mesmo uma boa pessoa”, que “por vezes escreve coisas estúpidas e mesquinhas. Dá como exemplo, claro está, a vez em que escreveu sobre a Taberna do Mercado. Tentando explicar que está a usar o célebre british humour, que como sabemos pode ser dark com sabor a diferentes variantes de violência, o crítico recorda que até comparou as cozinhas portuguesa e britânica. Dizia ele há sete anos: “Na melhor das hipóteses, a cozinha portuguesa, pesada e na sua insipidez demasiado salgada, é o que a cozinha inglesa seria se tivéssemos um clima melhor.”

Saltamos sete anos para o dia de hoje: “Através do desrespeito à minha própria cozinha nacional, esperava que ficasse claro que era uma piada”, diz, achando que esse sarcasmo autoflagelador teria “graça”. Mas “Portugal não achou” graça nenhuma –​ uma petição contra Coren, ainda preservada online, por exemplo, tem 3438 assinaturas; nela pode também ler-se o texto original do crítico e uma tradução em português.

Entre saraivas de ataques a Coren (com muito palavrão à mistura), opiniões para todos os gostos, cruzadas nas redes sociais, cozinheiros e celebridades portuguesas na defesa da cultura gastronómica portuguesa, houve também quem colocasse a questão “E se a cozinha portuguesa não for a campeã do mundo?”, como fez “o homem que comia tudo”, o jornalista e gastrónomo Ricardo Dias Felner que até, como se destaca, “chegou à conclusão de que precisamos de um banho — um caldinho, vá — de humildade”.

E agora para algo completamente diferente: Coren decide ir ao Lisboeta de Nuno Mendes, que tem como ingredientes a cozinha portuguesa e a cidade de Lisboa, porque tem mesmo de ser. É que é considerada uma das grandes novidades da cena britânica e ele, como bom crítico gastronómico sempre em cima da cena, não podia deixar de ir. “Atrever-me-ia a entrar? Será que o Nuno me poderia atacar? Será que todos os chefs portugueses e comensais poderiam espancar-me até à morte, salgar-me e conservar-me e uns meses depois cozerem-me com batatas?”

Apesar dos medos, Coren contacta Nuno, como quem apalpa terreno, é bem recebido (afinal, “ele ainda me ama") e acaba por ter um jantar tão bom que voltará com a mulher no dia seguinte para provar mais do menu. Do local à comida, agora não faltam elogios do crítico ao chef (que já recebeu a estrela Michelin pelo Viajante e depois pelo Mãos) e até ao “lindo” sítio do restaurante. E tirando a falta de uma cedilha ou outra, nem se detectam gralhas no português dos pratos provados pelo britânico, o que naturalmente, como sabemos, denota uma atenção acrescida.

Num texto polvilhado de humor como não podia deixar de ser (a cozinha aberta está cheia de “tipos peludos”, e nenhum “mais peludo que Nuno”, que “parece o pai do Aquaman”), engole, com um amigo, dois alentejanos (sem malícia: vodka, pimentão, tomate é a sua composição e é um cocktail de seu nome Bloody Alentejano), delicia-se com o unto (banha de porco) do couvert, às empadas Vindalho (que correctamente liga goês Vindaloo), morcela e lingueirão ("tão bom que pedimos outro prato"), bacalhau ("good"), plumas ("excelente”, o piripíri então, é mesmo “animador"), até chanfana (esta não lhe encheu as medidas mas contém-se) e, holofotes por favor, um “majestoso” arroz de marisco. Felizmente, ainda houve um espacinho para a sobremesa: é que o pudim abade de Priscos deixa Coren a considerar que ao pé dele todos os cremes de ovos são “pussies” (digamos que são uns fracotes, mas esta palavra calona contém uma cornucópia de sentidos).

Há mais elogios (e uma curiosa e atraente açorda de cogumelos de Mendes), mas para resumir uma longa história de amor-ódio: Coren, em 10 pontos, dá 9 ao Lisboeta, chama-lhe um “grande restaurante” com “belíssima comida moderna portuguesa”. E remata, como um Ronaldo da crítica gastronómica, com um golo que faz virar o resultado desta partida de amor-ódio com sete anos: “E a comida portuguesa, como toda a gente sabe, é a melhor comida do mundo”.

Amigos outra vez?

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