“É preciso descolonizar a estética”: há branqueadores de pele tóxicos à venda em Lisboa

Duas antropólogas encontraram facilmente no centro da capital produtos branqueadores de pele vendidos de forma ilegal. Alguns estão proibidos pela legislação europeia de regulamentação de cosméticos.

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Cremes branqueadores de pele, alguns com substâncias proibidas na cosmetologia, estão a ser vendidos em Lisboa REUTERS/Amit Dave

Cremes branqueadores de pele, alguns com substâncias proibidas na cosmetologia, estão a ser vendidos em Lisboa, expondo a riscos graves de saúde consumidoras que procuram com este aclaramento mais hipóteses a nível laboral e social.

Longe de quererem alcançar a cor da pele caucasiana, as mulheres de pele escura (negras e indianas, principalmente) que recorrem a estes aclaradores pretendem, com a sua aplicação, obter um tipo de aparência promovido na cultura ocidental europeia e, dessa forma, alcançar empregos que, acreditam, lhes estariam vedados, segundo um estudo realizado por duas antropólogas.

Estas consumidoras tentam, desta forma, seguir o exemplo de mulheres negras de sucesso, nomeadamente estrelas na música, cinema e moda, que clarearam a pele, como Beyoncé, Rihanna e Nicki Minaj.

Em Lisboa, o levantamento dos locais de venda destes produtos, a sua catalogação e entrevistas a consumidoras e profissionais de saúde foi feito por duas antropólogas, Chiara Pussetti e Isabel Pires, do Instituto de Ciências Sociais (ICS) de Lisboa, no âmbito do projecto Excel, que analisa a busca pela excelência corporal, em vários aspectos.

As antropólogas revelaram à Lusa que encontraram no centro da capital — Martim Moniz, Av. Almirante Reis, Intendente, Rua dos Anjos —, onde vivem e trabalham muitos cidadãos de países africanos e asiáticos, produtos branqueadores de pele vendidos de forma ilegal, a começar pela falta de informações em português.

Alguns desses cremes, na sua maioria indicados para mulheres, mas também em versão masculina, estão proibidos pela legislação europeia de regulamentação de cosméticos, precisamente devido às altas concentrações de substâncias tóxicas. Questionada pela Lusa sobre estes casos, a autoridade que regula o sector do medicamento disse ter conhecimento de que “estes produtos existem no mercado europeu”.

“Em colaboração com a Autoridade Tributária e Aduaneira, para cosméticos importados, estes produtos ocasionalmente são detectados em encomendas postais e na bagagem pessoal”, prossegue o Infarmed. Entre os vários produtos, que a Lusa facilmente encontrou em prateleiras de estabelecimentos comerciais nessa zona da capital, constam alguns que têm na sua composição — ou pelo menos isso publicitam — a hidroquinona, proibida nos produtos cosméticos e de higiene corporal para aplicação na pele devido ao seu potencial efeito cancerígeno.

A hidroquinona bloqueia a acção da enzima tirosinase, que tem participação na formação da melanina, conduzindo a um efeito despigmentante sobre a pele. “A inclusão de hidroquinona em produtos cosméticos é proibida e a única excepção permitida é a sua inclusão em produtos de coloração capilar e para unhas artificiais. A sua presença em cremes não é permitida desde o ano 2000”, referiu o Infarmed.

É provável que as mulheres que utilizam estes cremes desconheçam os riscos que correm, mas facilmente se apercebem que têm de o aplicar de uma forma contínua para que a pele mantenha o tom mais claro. Nos testemunhos reunidos pelas antropólogas, as utilizadoras assumiram que esta alteração estética lhes abriu as portas a empregos onde a mulher negra é bem-vinda, mas desde que seguindo os padrões de beleza promovidos na (antiga potência colonial) Europa e que, de resto, são visíveis nas embalagens destes cremes.

“É preciso descolonizar a estética, conseguir valorizar, na sua forma mais inclusiva, a beleza, independentemente da óptica ocidental, sem que se tenha de reproduzir modelos branqueados, ligados à indústria do cinema, da moda e da música euro-americana”, afirmou Chiara Pussetti.

A académica defende, o quanto antes, uma campanha de informação sobre os riscos de saúde que estas mulheres, e até crianças, correm, contando que uma das entrevistadas aplicava este creme à filha de 4 anos, porque assim esta ficava “mais clarinha e, portanto, mais bonita”.

Isabel Pires avança no mesmo sentido, ressalvando que a investigação não pressupõe, de todo, uma crítica a quem utiliza os cremes, mas antes ao facto de nos dias de hoje ter um aspecto agradável ao olhar branco significar uma vantagem na hora de aceder a direitos básicos, como o emprego. “Mulheres negras de pele mais clara têm empregos melhores e salários maiores que se traduzem em possibilidades educacionais melhores para si e para as suas famílias, quando comparadas com mulheres cuja pele seja mais escura”, lê-se no artigo das antropólogas.

Uma das razões para este fácil acesso a produtos com riscos para a saúde é o seu baixo preço e também por se encontrar quase disponível em dezenas de lojas, só nesta região da capital. A Lusa adquiriu vários cremes branqueadores, confirmando que o seu custo não vai além dos cinco euros por embalagem. Mas os branqueadores também se vendem em tónicos, sabonetes e outras apresentações.

Segundo o Infarmed, sempre que detecta produtos cosméticos com substâncias proibidas no mercado, como a hidroquinona, “as respectivas embalagens são removidas de venda, o operador económico é notificado para rectificar e corrigir essa infracção, e pode incorrer em processo de contra-ordenação social, com coimas associadas”.

Vários países africanos, onde o uso destes produtos é relativamente corrente, tentam há anos proibir o seu uso, como o Quénia, o Uganda, Gana, África do Sul e Costa do Marfim. No continente indiano, esta prática é ainda mais comum e o branqueamento de pele é o segmento de beleza que mais cresce todos os anos, gerando milhões de lucro.