Não há soluções mágicas para o subfinanciamento estatal

As verbas da proposta de OE2022 para o ensino superior e ciência não chegam para os salários dos docentes e investigadores que são funcionários públicos.

Os montantes transferidos através do Orçamento do Estado para o ensino superior e ciência não são suficientes para pagar os salários dos docentes e investigadores que são funcionários públicos. Este é um dado que muito surpreende quem desconhece os meandros deste setor. O subfinanciamento estatal prolonga-se há já mais de uma década, ao longo da qual se multiplicaram as contratações de profissionais em posições precárias e a baixo custo, com excesso ilegal de horas letivas e sem perspetivas de progressão.

Dois tipos de soluções para enfrentar estas dificuldades financeiras são frequentemente enaltecidas.

Uma dessas soluções apela à capacidade de atratividade de estudantes pelas universidades e politécnicos, por forma a aumentarem orçamentos institucionais através de maiores montantes cobrados em propinas. Considerando que as propinas de licenciatura têm um valor máximo fixado por lei, é o aumento, em muitos casos brutal, das de mestrado, pós-graduação e doutoramento que tem permitido em muitas instituições enfrentar as consequências do subfinanciamento estatal.

Mas nem todas as universidades e politécnicos têm as mesmas possibilidades de cobrar propinas elevadas. Aquelas que se localizam em grandes centros urbanos poderão estar, à partida, em melhores condições para captar um maior número de estudantes. As áreas disciplinares são também uma variável fundamental, porque nem todos os cursos têm os mesmos custos de funcionamento, por exemplo devido aos materiais e equipamentos que exigem. Há também cursos que se dirigem a setores profissionais em que se praticam salários médios mais elevados e em que as entidades empregadoras valorizam e apoiam a qualificação académica e, por isso, têm possibilidades acrescidas de angariar financiamento através de propinas elevadas.

Consequentemente, temos hoje um sistema público que limita as oportunidades de acesso ao ensino superior de muitos jovens e adultos em função da respetiva situação financeira, especialmente na formação pós-licenciatura. São muitos os que não podem livremente escolher continuar a estudar ou o que querem estudar e onde. Tais limitações à especialização técnica e científica são particularmente impactantes na capacidade de promoção de estratégias de desenvolvimento assentes na qualificação de população residente em Portugal.

Uma outra solução para enfrentar o subfinanciamento estatal é elogiada no relatório de Orçamento do Estado 2022 e aponta para o aumento das despesas com atividades científicas por parte de empresas, seguindo uma tendência que se registará desde 2015. O que não consta do relatório é que, nesse âmbito, se preveem custos com recursos humanos que são essencialmente não-doutorados e, portanto, sem qualificações adequadas para realizar autonomamente investigação de alto nível. Outra informação que também não é percetível no relatório é qual a parte do financiamento público em ciência que vai diretamente para o setor privado com fins lucrativos, ou ainda quais os benefícios resultantes do reforço do sistema de incentivos fiscais dirigidos às empresas para que estas invistam em ciência.

Acresce que esta solução gera, também, profundas iniquidades no sistema nacional de ciência. Desde logo, nem todas as áreas disciplinares são igualmente interessantes para investimento por parte das empresas, e a dependência de financiamento privado pode inviabilizar projetos de investigação cuja utilidade imediata não é evidente. Ora, a recente crise pandémica mostrou bem a relevância das atividades de ciência e tecnologia desenvolvidas durante largos anos em diversos domínios com base em dinheiros públicos, através da capacidade de resposta rápida à produção de vacinas e testes e implementação de estratégias de combate à COVID19.

Não há soluções mágicas. É por isso que é premente inverter o subfinanciamento estatal e é fundamental clarificar o peso e implicações do financiamento das instituições de ensino superior e ciência através de propinas e empresas, garantindo que o conhecimento está ao serviço de todos os cidadãos e do desenvolvimento do país.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar