Nêsperas, Deus e o Diabo
“A gente reza, pede a Deus isto, aquilo e aqueloutro, toma a promessa e a reza como certa e, quando contamos que a coisa aconteça, vem de lá o Diabo e baralha aquilo tudo. Às vezes, tenho ideia de que o Diabo é mais certo que Deus.”
– Boa tarde! Ó minha senhora, não me vende meia dúzia de nêsperas?
– Ó menino, vou lá agora vender-lhe as nêsperas. Leve quantas lhe couberem nas mãos – respondeu uma senhora com idade para ser minha avó.
– Olhe que cabem muitas...
– Também só cabem aquelas que eu tiver vontade de lhe dar – ripostou, soltando uma gargalhada.
– A senhora lembra-me a minha avó, tinha sempre troco para dar.
– De certeza que era boa pessoa. Vá, ande lá, apanhe as nêsperas que quiser que se estão aí a estragar. O meu filho já cá não vem há mais de um mês e eu, sozinha, não dou conta disso.
– Não seja por isso, traga de lá um saco que dou-lhe aí uma ajuda.
– Então, mas assim vai pagar-me com trabalho as nêsperas que eu lhe quero dar – respondeu, franzindo o sobrolho.
– Fica troca por troca. Assim como assim, apercebi-me agora que nem dinheiro trago no bolso. Só se aceitasse multibanco.
A senhora pousou a sachola com que andava a amanhar a terra dos vasos e encaminhou-se para o alpendre. “Casa de Deus”, lia-se numa placa na parede.
– Ainda há gente boa, vizinha. Já arranjou quem lhe apanhasse as nêsperas… – comentou uma outra senhora, aparentando ser ligeiramente mais nova do que a primeira, que surgiu no jardim da casa ao lado. Vestia uma camisa de cores muito garridas e o cabelo pintado num tom avermelhado.
– É verdade, vizinha, graças a Deus. Pelo menos uma parte delas já não vai apodrecer na árvore.
– Graças a Deus, não, graças ao rapaz – ironizou a senhora excêntrica, já debruçada sobre o muro que separava as propriedades.
(Adoro quando me chamam rapaz. E menino, sobretudo menino)
– Gente boa é como quem diz. Isto é trabalho, não é caridade – brinquei.
– Seja como for, é obra do Senhor – insiste a senhora da Casa de Deus.
– Ó vizinha, deixe-se lá disso. A gente reza, pede a Deus isto, aquilo e aqueloutro, toma a promessa e a reza como certa e, quando contamos que a coisa aconteça, vem de lá o Diabo e baralha aquilo tudo. Às vezes, tenho ideia de que o Diabo é mais certo que Deus.
Ao ouvi-las, recordei uma passagem do livro Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, de Alexandre Solzhenitsin: “As orações são como os apelos que dirigimos às autoridades – ou não chegam ao seu destino, ou são-nos devolvidos com a palavra ‘Rejeitado’ rabiscada no papel.”
Pensei em partilhar o trecho com as senhoras, mas escolhi manter-me em silêncio e limitar-me a colher as nêsperas, não fosse estar a pisar terreno minado...
– A gente precisa de acreditar nalguma coisa, vizinha. Se tem fé no Diabo, que a tenha. É a ele que pede quando está aflita?
– Olhe, já tem acontecido – respondeu a senhora do cabelo avermelhado.
E desataram as duas a rir.
Juntei-me a elas na risota e aproveitei para intervir: – Uma vez, um homem que estava muito doente e que era crente em Deus disse-me que “um gajo quando está à rasca, reza até ao Diabo”.
– Está a ver vizinha, parece que não sou a única…
– Pois, isso cada um acredita no que quer. Eu só acho que temos de ter fé em alguma coisa.
– Lá isso é verdade. E eu tenho fé. Vou pedindo a Um e a Outro consoante as necessidades. Só não peço nunca para me manterem viva. Se conseguir ir escapando, tanto melhor, se morrer, paciência.
– Olhe vizinha, deixe lá, eu vou pedindo a Deus por si e para que a mantenha por cá muito tempo. E a partir de agora vou também pedir por este rapaz e pela família dele.
– Agradeço, vizinha. E agradeço também as nêsperas. Já lhe dei aí um desbaste valente, são menos algumas que se estragam.
– Então e o menino, pede ajuda a Deus ou ao Diabo? – perguntou-me a senhora excêntrica, com ar de quem me queria tramar aos olhos da vizinha das nêsperas.
Pensei em ser politicamente correto e reservar-me o direito de não responder. Contudo, o tom ligeiramente desafiador da pergunta convenceu-me.
– Não peço a nenhum. Simplesmente acredito.
– Em qual dos dois? – insistiu.
– Em mim. Eu sou Deus. E a senhora também.
– E o Diabo, quem é?
– Eu. E a senhora também.
– Hã, como é que é isso? – perguntou, num tom de ligeira indignação, franzindo o cenho.
Escolhi calar-me e sorrir da forma mais enigmática que consegui.
– Olhe, leve também uns limões. É o que tenho para lhe dar do meu jardim – disfarçou, estendendo as mãos para o limoeiro.
– Levo, pois, obrigado! Mas basta um ou dois. Quer que a ajude a apanhar aí uma mão-cheia deles para não se estragarem?
– Não, deixe estar, obrigado. Gosto de os ver na árvore, o jardim fica mais colorido.
– É um belo limoeiro – apreciou a senhora da Casa de Deus.
– Não o gabe, vizinha, não o gabe que ele deixa de dar limões. Já me aconteceu aqui há uns anos. Olhe menino, vou para dentro, mas fique descansado que também vou rezar por si e pela sua família
– Rezar a quem? – perguntei, pressentindo a resposta.
– Ora, acho que já imagina a quem vai ser…
Despedi-me com os bolsos do casaco atafulhados de nêsperas e três limões numa das mãos. Comi algumas nêsperas enquanto caminhava para encontrar espaço nos bolsos para os limões. Ainda estava longe de casa e eu gosto de caminhar com as mãos soltas. Um hábito que me ficou de infância. Quando era miúdo, havia mais campos sem cercas e menos casas e eu e os meus amigos passávamos os dias a deambular. E dava jeito ter sempre as mãos desocupadas para, por exemplo, saltar um muro para fugir de um cão. Ou mesmo de uma matilha, como chegou a suceder. Havia muitos cães vadios, alguns, provavelmente por terem sido maltratados, bastante agressivos. Os microchips de identificação animal não existiam e a carrinha da câmara que recolhia os cães sem dono aparecia de ano a ano. Agora, pelo menos onde vivo, quase não se veem cães vadios. Felizmente. Mas nunca se sabe. Alguém se esquece de um portão aberto, o cão escapa-se para a rua, entusiasma-se com a liberdade e desanuvia a trincar qualquer coisa. Sou um bocado medricas com cães soltos na rua, já terão reparado. Mas há uma razão para isso. Tenho ainda bem presente na memória o dia em que entrei numa quinta e um cão pequeno, mas com uma boca grande e os dentes bem afiados, me mordeu numa canela.
Hoje, cheguei ileso a casa. Outra coisa não seria de esperar, protegido que estava por Deus e pelo Diabo.
Entrei e pousei as nêsperas em cima da mesa da cozinha.
– Compraste nêsperas, boa!
– Não comprei.
– Deram-te?
– Também não.
– João… Roubaste?
– Achas? Troquei pelo meu suor.
– Como assim? Onde?
– Na Casa de Deus.
– Oh, está-se mesmo a ver que há nêsperas na igreja. Compraste.
– Não comprei, já te disse. Ajudei uma senhora que vive na Casa de Deus a colher as nêsperas e ela deu-me algumas. E ainda ficou a rezar por nós.
– Tu só inventas. Então e os limões, deram-tos na casa do Diabo?
– Não foi bem isso, mas quase. Deu-mos uma senhora assim um bocado excêntrica, com o cabelo vermelho e tal, que vive ao lado da Casa de Deus e que é crente no Diabo. E também ficou a rezar por nós, para que saibas.
– Oh, estás mesmo a gozar.
Ninguém acredita.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990