Os Impérios geram monstros

Recordemos um tropismo histórico-cultural, relegado hoje para a secção das velharias inúteis, que pairou no ambiente europeu depois da queda do Muro de Berlim e já antes, nos anos em que o império soviético e os seus satélites começaram a prenunciar o colapso. Consistia ele na transposição para toda a Europa do ideal mitteleuropeu de convivência harmoniosa dos povos e nações situados entre a Rússia e a Alemanha e da sua riquíssima cultura germânica-eslava-magiar-judaica. Um dos responsáveis deste tropismo afortunado foi o escritor italiano Claudio Magris, a partir de um posto de observação privilegiado, Trieste, cidade de fronteira e abertura marítima do Império austro-húngaro, a que Magris chamou uma “civilização” (e também uma koinè) essencialmente fluvial, marcada pelo Danúbio, o rio que nasce algures na Floresta Negra, atravessa nove países e desagua no Mar Negro. Danúbio (1986) é precisamente o título do livro onde Magris faz uma “viagem sentimental” na “civilização” danubiana. Em 1983, um longo artigo de Milan Kundera na revista francesa Le Débat inaugurou o tropismo. Chamava-se esse artigo Un Occident kidnappé ou la tragédie de l’Europe Centrale. Kundera tinha deixado a Checoslováquia em 1975 e adquirido cinco anos depois a nacionalidade francesa. Nesse artigo defendia uma “ideia de Europa” baseada sobretudo na herança histórica, cultural e religiosa e fazia-a coincidir com o Ocidente, em oposição à Rússia. Se a Europa Central se mantinha na esfera da influência política e militar da Rússia era porque tinha sido kidnappée, sequestrada. Era pois necessário libertá-la e permitir o seu regresso ao lugar legítimo. As projecções de uma Mitteleuropa que ressuscitava o mito do “mosaico harmonioso” do Império habsbúrgico subiram de tom depois da queda do Muro de Berlim e foi o próprio Claudio Magris que alertou para o perigo e o irrealismo dessas idealizações. O Império austro-húngaro, como todos os impérios, não é cosmopolita, é supranacional: é uma forma meta-política que permite às identidades locais e nacionais coexistir sem se aniquilarem e sem se esvaziarem num espaço global.

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