Do Kwanza a Veneza

A “subavaliação” das propostas de Grada Kilomba e da dupla Mónica Miranda e Paula Nascimento no concurso para a representação de Portugal na Bienal de Veneza são um sintoma do deserto monocromático nos lugares de decisão no campo artístico, normalizado por uma política “que não vê cores” legitimadora do racismo institucional.

A lendária Carlota, guerrilheira negra, percorre de canoa o rio Kwanza, numa viagem pelo peso do passado colonial, no presente, procurando sonhar para além dele: “Sempre que visitares o passado, limpa os pés”. Essa é uma das leituras possíveis de Path to the Stars, vídeo integrado na exposição No longer with the memory but with its future, que Mónica Miranda – artista e investigadora afroportuguesa e uma das fundadoras do Hangar - Centro de Investigação Artística – e Paula Nascimento – curadora angolana – apresentaram este ano no programa paralelo da Bienal de Veneza. Esta é também a sua viagem, assim como a de Sonia Boyce e Simone Leigh, premiadas nesta Bienal de Arte de Veneza. 2022 foi a primeira vez que artistas negras foram galardoadas na Bienal. Foi também a primeira vez que foram selecionadas para representar países com um longo historial escravocrata e colonial, respetivamente o Reino Unido e os Estados Unidos da América. De igual modo, Zineb Sedira, de origem argelina, foi a primeira mulher não-branca a representar o pavilhão francês, tendo ganho também uma menção especial nesta bienal. À excepção de dois, nesta 59.ª edição da bienal, todos os prémios – entre menções especiais, leões de ouro e prata – foram atribuídos a artistas não-brancos/as.

Ao arrepio dos tempos, Portugal, ex-metrópole de um dos mais longos e extensos impérios coloniais, deixa de fora três artistas negras – Grada Kilomba e a dupla de Mónica Miranda e Paula Nascimento –, da possibilidade de representação do país. Apesar disso, Mónica Miranda e Paula Nascimento, com o apoio da Fundação Caloustre Gulbenkian, não deixaram de se apresentar nesta bienal de Veneza, e estarão também na de Berlim, cujo tema central é a “descolonização da arte”. Já Grada Kilomba estará representada no restrito grupo de curadores da Bienal de São Paulo. É curioso perceber como em nenhum desses eventos se considera que a “ferida” colonial foi já demasiadamente debatida.

Do Kwanza a Veneza, o caminho é longo e sinuoso. A velha Bienal, criada em 1895, só na década de 1990 começará, pouco a pouco, a ter alguma representação negro-africana. E, mesmo assim, ainda hoje a configuração espacial da Bienal reproduz essas relações geopolíticas. Os países do Norte, há mais tempo representados, ocupam a zona central – Arsenal e Giardini –, enquanto as periferias do sistema mundo têm os seus pavilhões espalhados pela cidade. Em 1990, enquanto a Nigéria e o Zimbabwe eram os primeiros a participar, o Studio Museum of Harlem apresentava, sob a curadoria de Grace Stanislaus, a exposição Contemporary African Artists: Changing Tradition. Em 1993, será a vez do Senegal, Costa do Marfim e África do Sul se fazerem representar. Por essa altura, a discussão detinha-se não só sobre a representatividade da arte africana e negra, mas também sobre a forma como era representada, urgindo que se rompesse com o imaginário “etnográfico-colonial” sobre a mesma, enquadrando-a como expressão da contemporaneidade. De então para cá outros países africanos têm estado representados, mas a sua participação tem sido flutuante e reduzida, dado os pesados custos da participação num evento como a Bienal.

Mais tarde, em 2007, Malick Sidibé será o primeiro artista africano a ser galardoado com o leão de ouro pelo seu percurso. Mas esse será também um ano controverso pelo problemático lançamento de um “pavilhão africano” (lembre-se que África não é um país!) que acabaria por ser financiado pelo, entretanto falecido, colecionador de arte Sindika Dokolo, dando lugar à exposição Check List Luanda Pop, sob a curadoria de Simon Njami e Fernando Alvim. A proximidade à família dos Santos e ao mundo dos negócios seria, então, alvo de crítica que, embora pertinente, não é especificidade angolana, devendo ser dirigida ao panorama geral da Bienal.

Para além de exposições avulsas, têm vindo a ser criados, desde 2017, espaços com continuidade entre bienais como o African Art in Venice Forum e o Pavilhão da Diáspora. Os anos de 2013 e 2015 marcam uma viragem na história do certame quando, para além do campo da criação, a representatividade começa a chegar à tomada de decisão: Bisi Silva integra o júri internacional de 55.ª Bienal de Veneza e Okwui Enwezor é o curador da 56.ª, ficando a última para a história como uma das bienais em que a arte contemporânea negro-africana esteve mais e melhor representada. Em 2013, o pavilhão de Angola será o primeiro pavilhão nacional africano a receber o leão de ouro, com a curadoria de Paula Nascimento e Stefano Rabolli Pansera e com o trabalho de Edson Chagas. Após um interregno de vários anos, nesta edição de 2022, voltamos a ter na equipa do júri da bienal um curador negro-africano, Bonaventure Ndikung.

Embora o potencial de gerar mudança de uma estrutura profundamente capitalista e eurocêntrica como a Bienal de Veneza tenha os seus limites e saibamos que é nas bienais do Sul do mundo – como a de Abidjan, Bamako e Dakar – e em contextos periféricos de produção artística no continente e na sua diáspora que se joga boa parte do futuro das artes visuais negro-africanas no mundo contemporâneo, esta breve e incompleta síntese sobre a representatividade negra nas bienais de Veneza não deixa de interpelar a realidade portuguesa.

A “subavaliação” das proposta de Grada Kilomba e da dupla Mónica Miranda e Paula Nascimento no concurso para a representação de Portugal na Bienal de Veneza são um sintoma do deserto monocromático nos lugares de decisão no campo artístico, normalizado por uma política “que não vê cores” legitimadora do racismo institucional. É verdade que a Direção-geral das Artes, em diálogo com a União Negra das Artes (UNA), reviu as regras dos planos de apoio às artes, passando a considerar de interesse público a diversidade étnico-racial, incluindo-a como fator de majoração (10%), na avaliação de projectos. Esse é, face à necessidade de quotas étnico-raciais, um pequeno passo e cujos riscos de “tokenização” dificilmente podem ser evitados, se a medida não estiver integrada num conjunto mais abrangente e articulado de políticas. Entre outras, são necessárias medidas que deem suporte continuado a espaços artísticos (no centro e na periferia) que tenham na sua matriz o debate sobre a (pós e de)colonialidade e negritude; que garantam maior representatividade étnico-racial nos lugares de decisão – na direção das instituições artísticas, nos curadores/as, júris de concursos e na liderança de projetos artísticos; práticas de monitorização da desigualdade étnico-racial e das políticas neste domínio; e maior igualdade étnico-racial no acesso à educação artística. Lembremo-nos como insuficiências da rede escolar, elevados custos dos materiais exigidos e pouca probabilidade de se vir a ter uma integração profissional condigna na área têm contribuído para o elitismo nas artes e dissuadido as comunidades racializadas de ingressar nessas vias de ensino. Quando estas e outras coisas estiverem resolvidas aí poderemos falar verdadeiramente de “liberdade criativa” e de “juízo crítico” só alcançáveis quando todas e todos puderem participar.

Pedro Adão e Silva, atual ministro da Cultura, convidou (e bem) Alice Neto de Sousa, poeta negra, para as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e considerou a reação de Moussa Marega indispensável para que a sociedade portuguesa ganhe “vergonha”, resta saber se estará disponível para implementar políticas estruturais no setor, ou seja, se a teoria resultará desta vez numa prática efetiva de combate às desigualdades étnico-raciais que grassam no setor artístico.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 3 comentários