A crise climática vai gerar um mundo de doenças novas

Subida da temperatura da Terra obrigará à migração de muitos animais, levando a que se cruzem os caminhos (e vírus) de espécies que até hoje nunca tinham interagido umas com as outras. O alerta está num estudo na revista Nature.

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Mapa da vegetação global da Terra vista do espaço ESA/Proba V

Devido ao aquecimento global, muitas espécies terão, ao longo das próximas décadas, de se mudar para regiões com condições climáticas que permitam a sua sobrevivência. Com este movimento migratório, muitos animais trarão os seus patógenos — agentes que provocam ou podem provocar doença — para geografias novas. Para os humanos, isto poderá traduzir-se não só na propagação de muitas das doenças que já conhecemos, como também no surgimento de infecções inéditas.

É o que se indica num novo estudo publicado, esta quinta-feira, na revista científica Nature. Os autores do trabalho — cujo investigador principal é Colin J. Carlson, jovem biólogo na Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos — estimam que, devido à crise climática e às migrações de animais a que o aumento da temperatura da Terra obrigará, acontecerão pelo menos quatro mil transmissões de vírus entre diferentes espécies até 2070. Essas migrações levarão a que se cruzem os caminhos (e agentes patogénicos) de espécies que até hoje nunca tinham interagido umas com as outras.

Como é que os humanos serão afectados pelo facto de ser “previsível” que muitos vírus venham a encontrar novos hospedeiros? Eis o que referem os autores: da mesma forma que o “salto” do vírus da imunodeficiência símia dos macacos para os chimpanzés e os gorilas “facilitou as origens da sida”, e assim como o facto de o vírus SARS-CoV-1 ter atingido as civetas permitiu que “um vírus de morcegos chegasse aos humanos”, estes saltos entre hospedeiros poderão vir a ser momentos “evolutivos” para os cerca de “dez mil vírus potencialmente zoonóticos [uma zoonose é uma doença infecciosa transmitida aos humanos por animais] que actualmente estão a circular em hospedeiros mamíferos”.

Pelo menos quatro mil transmissões de vírus

Colin Carlson e os investigadores com quem trabalhou estudaram 3870 espécies de mamíferos e tentaram antecipar a forma como, até 2070, poderão migrar para geografias diferentes daquelas que ocupam actualmente. Esta projecção foi feita a partir de quatro cenários climáticos. A projecção mais animadora descreve um futuro em que, à escala global, conseguimos reduzir as nossas emissões de gases com efeito de estufa, fazemos uma gestão sustentável dos ecossistemas e recursos naturais e, naquilo que à mitigação do aumento global da temperatura diz respeito, os objectivos actuais relativos ao Acordo de Paris são cumpridos.​

Foi tido em conta o facto de ser “improvável” que muitas espécies consigam mudar de habitat de forma rápida. A velocidade a que os animais migrarão, pode ler-se no estudo, será sempre mais lenta do que “a velocidade das alterações climáticas”.

Os investigadores prevêem que, até 2070, a “vasta maioria” das espécies de mamíferos deverá cruzar-se com “pelo menos uma espécie” com a qual ainda nunca interagiu. Estes “primeiros encontros”, que deverão acontecer um pouco por todo o mundo, ocorrerão sobretudo na região tropical de África e no Sudeste do continente asiático.

O facto de terem sido estes os territórios que os modelos matemáticos usados pelos autores sinalizaram como de especial relevo surpreendeu-os. Ciente de que há relatórios que sugerem um “elo” entre alterações climáticas e parasitas a saltarem entre hospedeiros no Árctico, a equipa liderada por Colin Carlson iniciou a sua investigação a pensar que o mais provável seria as espécies virem a agregar-se em “latitudes mais altas”.​

Se os mamíferos forem capazes de se mover ao mesmo ritmo do que as alterações climáticas, o número de “primeiros encontros” poderá ultrapassar os 300 mil. Isto ocasionaria mais de 15 mil transmissões de vírus entre hospedeiros, mas os autores admitem que, biologicamente, é pouco realista assumir-se que as migrações acontecerão a uma velocidade assim tão célere. A quantidade de “primeiros encontros” desceu 61% e as transmissões de vírus caíram para 4584 quando os investigadores calcularam as projecções limitando a mobilidade dos animais.

O papel dos morcegos

Há, contudo, um mamífero a cuja mobilidade não foram impostas restrições. “Há provas genéticas de que a capacidade de voar torna possível que os morcegos (e os seus vírus) circulem a níveis continentais”, sublinham os autores, alegando que, “de acordo com alguns dados”, a distribuição de morcegos à escala planetária já está a alterar-se de forma “desproporcional” e “rápida”.​

“A capacidade de voar que os morcegos possuem”, destacam os investigadores, poderá ser “um elo importante (e, até então, desconsiderado) entre migrações motivadas por alterações climáticas” e as doenças de que os mamíferos podem padecer. É salientado no estudo que “até mesmo morcegos não migratórios” conseguem superar de forma “vasta” as distâncias que “mamíferos pequenos conseguem cobrir em 50 anos”.

A “tempestade” já começou

Este estudo realça a importância de se investir (ainda) mais na monitorização de doenças zoonóticas, consideram os autores, que fazem a seguinte advertência: tenhamo-nos apercebido disso ou não, estas transmissões de vírus motivadas pela subida da temperatura já começaram a acontecer.

Esta quarta-feira, numa conferência de imprensa organizada pela Nature, Gregory Albert, um dos autores, alertou para “termos de começar a preparar-nos para as coisas não só como elas são, mas como virão a ser”. Colin Carlson, por sua vez, referiu que, embora estejamos “habituados a pensar”​ que o risco do surgimento de novas pandemias é “​um problema dos ‘outros’”, a crise climática está a criar regiões de risco sanitário acrescido “nos nossos quintais”. “Temos de construir serviços de saúde capazes de responder àquilo que as alterações climáticas estão a fazer e vão continuar a fazer”, disse.

Segundo a óptica do investigador, prepararmo-nos para o aparecimento de novas pandemias é adaptarmo-nos às alterações climáticas, dado que, entende, não se pode pensar que as doenças emergentes não resultam da deterioração do ambiente. E tanto Colin Carlson como Gregory Albert referiram que o objectivo do estudo não foi tentar perceber que tipo de encontros entre espécies serão os mais perigosos. “Não estamos a dizer: ‘Um tigre vai cruzar-se com um alce pela primeira vez e as consequências serão x e y.’ Isso seria como um serviço de meteorologia prever uma tempestade e querer falar de uma pequena gota de água. O que nos parece mais importante é que este processo [de transmissão de vírus entre animais] está a acontecer, não é evitável e temos de nos preparar para o que aí vem.”

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