A minha mulher tem a mão pesada

Podíamos ter sido felizes. Gostava muito dela no início do nosso casamento mas agora já não. Somos os dois bastante infelizes, verdade seja dita. O problema é que se passaram cinquenta anos, sinto que estou a ficar velho e percebo agora que nunca fui. Quase não existi.

Foto
Roberto Huczek/Unsplash

Querido Diário,
sei que não passas de um pequeno caderno mal-amanhado, escondido no rodapé do quarto, e, ainda que pareça efeminado, infantil ou insano da minha parte colocar-te um vocativo carinhoso que personifica inutilmente a tua existência de papel, é assim que te nomeio sempre.

Só tu sabes o inferno em que vivo. Envergonho-me de ser este projecto de homem sem coragem para se rebelar ou fugir da agressora com quem casou há mais de cinquenta anos. A minha mulher voltou a bater-me. Estávamos no sofá a ver um dos programas que escolheu. Nunca tive direito a seleccionar o que vemos nesta casa, apesar de ter sido eu quem comprou o televisor e a mesa que o apoia, e quem paga a electricidade que o põe a funcionar.

Não penses que não me sinto um “queixinhas” por vir aqui escrever as coisas que me acontecem. Sinto-me um queixinhas, um mariquinhas. Ou talvez seja apenas um homem fraco e muito doente. Não tenho dó de mim. Portanto, estávamos a ver o tal programa em que as pessoas berram em vez de conversarem, e dizem banalidades e contam situações tóxicas, quando a minha mulher me disse, assim de repente: “Tu andas a enganar-me.”

Podes ter a certeza de que não a ando a enganar, querido Diário. Depois de me ter reformado custa-me até subir a rampa para ir à padaria, não tenho energia para amarinhar no sentido de outra mulher. Aliás, apesar das várias e sucessivas acusações de adultério que tenho sofrido, nunca a enganei. Desmenti a acusação que me fez, claro. Embora tenha percebido que a questão não era haver outra mulher, simplesmente quis implicar comigo, arranjar confusão, coisa que faz há décadas, diária ou semanalmente. “Eu sei que tens outra gaja. Metes-me nojo.” E deu-me uma chapada com força no lado esquerdo da cara.

A minha mulher tem a mão pesada. Já há muitos anos que lhe conheço o peso. Vim para o quarto, que é onde estou agora, e tranquei a porta. Se fosse apanhado a escrever-te, a minha pouca reputação de homem seria definitivamente aniquilada. Oiço-a vir na direcção do quarto. Sei bem a fita que se segue. Vai bater à porta, chamar-me nomes e tentar que não durma esta noite. É assim há anos. Tenho sempre esperança de que um dia pare.

Podíamos ter sido felizes. Gostava muito dela no início do nosso casamento mas agora já não. Somos os dois bastante infelizes, verdade seja dita. O problema é que se passaram cinquenta anos, sinto que estou a ficar velho e percebo agora que nunca fui. Quase não existi. Vou tornar a guardar-te no rodapé do quarto, bem escondido. A minha mulher bate com força na porta do quarto. Parece um animal em fúria. Detesto-a. Detesto-me. Um dia tudo há-de acabar. Tenho aqui apontado um número de uma associação que ajuda nestas situações. Preciso de ganhar coragem e, em vez de continuar a escrever aqui, mudar de vida e telefonar. Não leves a peito que te troque por um telefonema. Penso que talvez haja alguém “querido” que não seja um diário, alguém de carne e osso do outro lado da linha que me possa, enfim, ajudar.

Sugerir correcção
Comentar