Contra o belicismo, pela paz

Será demais pedir que os apelos à paz, sejam individuais, sejam colectivos, não tenham como interpretação imediata que se trata de uma posição pró-Putin ou pró-russa?


Estávamos nós a sair da pandemia e a tentar colar o passado com o futuro, quando nos entram pela porta dentro as notícias e as imagens da invasão da Ucrânia. A pandemia deixou perdas inesperadas e teve consequências ao nível económico e social, com um aumento de desigualdade sem precedentes. E consequências discretas e secretas – as do mal-estar psicológico. Deixou medo. E eis que uma guerra em território próximo vem deixar mais consequências económico-sociais. E de novo o medo, que é íntimo. Quem faz clínica conhece esta realidade. Será demais pedir que os apelos à paz, sejam individuais, sejam colectivos, não tenham como interpretação imediata que se trata de uma posição pró-Putin ou pró-russa?

Putin e a corrente política que o rodeia tem todas as características daquilo que podemos considerar como fascismo, sem ter medo da palavra. O núcleo fundamental é uma ideia de nação metafísica, acima da realidade humana, das mulheres e homens que a compõem. Tem heróis míticos e mitos históricos, sagrados e indiscutíveis, vitórias em batalhas, baseadas no número de inimigos esmagados. Centraliza o poder no chefe, indiscutível e incriticável e usa todos os meios para reprimir quem possa pôr em causa esse poder. A expansão e a guerra fazem parte desse poder imperial, são existenciais.

Tivemos em Portugal um assim – Salazar – reduzido à escala do rectângulo, mas baseado no Império, que afinal tinha tão grande superfície quanto toda a Europa, tal como representava num mapa. Durou quarenta e oito anos e, quando foi posto em causa em 1961, o chefe ordenou “para Angola rapidamente e em força”. Decorreram 13 anos e 10.000 mortos de cada lado, em números subavaliados. Nenhum apelo a negociações propostas do seu lado político encontrou resposta. O mesmo vai suceder com Putin e o seu regime. Se a ideia era ocupar toda a Ucrânia pode tê-la perdido. Mas não largará o Donbass, nem a ferradura e cerco até à Crimeia. Vai ser uma guerra prolongada, permanente, como são outras em outras partes do mundo. Cruel, fazendo vítimas e sofrimento de civis e uma triste história de refugiados. Ao lado dele, Cyril faz o papel que Cerejeira fez para Salazar.

Quem ganha e quem perde

Estas características imperiais e belicistas do regime pró-fascista de Putin, que não é só um homem, são também todos os que o rodeiam, não podem fazer com que se analise de uma forma simples aquilo que é complexo. Como vários analistas ocidentais, civis e militares têm destacado, isto tem uma história, que tem que ser entendida para a procura de soluções. Alguns situam-na em 2014, outros em 2008 e talvez possamos ir até 1989.

Ai que saudades de Gorbatchov e do seu projecto da Europa até aos Urais! Foi derrubado por Ieltsin/Putin em conluio com os “ocidentais” e para instalação do capitalismo na Euro-Ásia. Quando a França e a Alemanha entraram em negócios com a Rússia era ainda esta tentativa de vida civil europeia em paz, com independência dos EUA. No entanto, não agradava à Administração americana. E eis que Putin lhes oferece de graça o grande pretexto! Aí estão os EUA a comandar a ofensiva, a dominar, a fornecer armas e mais armas para alimentar o fogo local da guerra, a obrigar os países europeus a seguirem a sua batuta. “A Europa a correr o risco de se tornar um Estado vassalo dos Estados Unidos” como diz o major-general Agostinho Costa. Temos portanto Império contra Império. A guerra é trazida para a Europa, após um Médio-Oriente onde os EUA e a Rússia contam espingardas.

Já se vê quem no meio disto ganha e quem perde. Quem ganha é a inesgotável indústria do armamento, quem perde são as pessoas do mundo inteiro. Os preços dos combustíveis dispararam, as grandes empresas de energia aumentaram exponencialmente os lucros, a inflação com aumentos dos produtos básicos instalou-se rapidamente. Os cereais vão faltar. As populações vão sofrer. Nos ecrãs das televisões generalistas as imagens sucessivas, mas iguais, dos mesmos massacres substituíram as repetidas imagens da fila de ambulâncias à porta do Hospital de Santa Maria que ocorreram em dois dias, mas que nos perseguiram durante a pandemia para explicar que havia caos no Serviço Nacional de Saúde.

Por trás dos ecrãs escapam ao nosso conhecimento as conversações e planos belicistas. Honra seja feita aos nossos militares e às suas análises. Passaram pelo 25 de Abril, ou seja o Movimento das Forças Armadas passou por eles. Sem essa clarificação, bem ao contrário, os militares franceses, infelizmente votaram em Le Pen 20 por cento acima da média dos franceses. Assustador sim, belicista sim. Ir mais longe significa também analisar o interior do poder ucraniano. Honra seja feita a este jornal, que fez reportagem sobre o batalhão de Azov.

Perante isto o que resta de humano é, paralelamente à condenação de Putin e da invasão, lutar pela paz. Revelar todos os movimentos que existem nesse sentido e que ficam ocultos. O dos médicos russos e de outros movimentos desse país, entre eles as mães que clamam para que Putin não leve os seus filhos para a frente de batalha (coisa que em Portugal não se deu durante a guerra colonial), as manifestações Europe por Peace que se passam em outros países, as de Anna Kolotova, secretária geral do grupo Unite European Left na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, na qual estão representados 47 Estados. Ela, cuja família mais próxima (mãe, avó e sogros) conseguiram fugir da Ucrânia, mas que tem lá outros próximos em abrigos antiaéreos, explica que há pacifistas na Ucrânia e que só os movimentos pela paz e contra a guerra os podem ajudar. Foi também um apelo à paz a par da condenação da invasão que foi feito por um grupo alargado de médicos portugueses, cujo texto não foi publicado. E foi o Papa na Semana Santa, bem mais importante.

Ora, para além do significado político que estas posições antibelicistas possam ter, quero acreditar que as palavras de paz, o apelo ao fim da guerra, têm pelo menos o efeito subjectivo de trazer um pouco de tranquilidade à inquietação psicológica, que atravessa o estado mental das pessoas.

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