Como iremos fazer agricultura num futuro com menos água?

O impacto das alterações climáticas não deixa margem para dúvidas: vamos ter menos água disponível. 

O caminho será aumentar o regadio e esquecer a agricultura de sequeiro? Ou conseguiremos um equilíbrio dos dois modelos?

Entre projectos para salvar o Tejo, preocupações com os aquíferos no Algarve e o exemplo, para o bem e para o mal, do Alqueva, fomos à procura de respostas.

Reportagem de: Alexandra Prado Coelho (texto), Vera Moutinho (vídeo), Matilde Fieschi, Miguel Manso e Nuno Ferreira Santos (fotografia), Cátia Mendonça (infografia)

“A água antes chegava até aqui. Lembro-me de que, quando era miúdo, daqui para a frente era água. E olhe agora.” Manuel Campilho aponta para a pedra que em tempos marcava o início do rio Tejo na zona onde nos encontramos, perto de Alpiarça. À nossa frente, areia a perder de vista. Avançamos como se estivéssemos numa praia, até um modesto curso de água – o rio. “Esta areia é do rio, que ficou a descoberto. Não há peixes.”

O empresário agrícola da Quinta da Lagoalva olha para o triste cenário e, ainda assim, consegue imaginar um futuro em que o rio volta a correr, os peixes reaparecem, a flora renasce, as embarcações passam, e os campos em redor são cultivados, usando a água do Tejo. “O que nos propomos fazer é pôr água no rio, voltar a reabilitar este ecossistema”, declara.

Ao seu lado, o engenheiro agrónomo Jorge Froes explica o que é esse Projecto Tejo no qual ambos depositam grandes esperanças. “O que queremos é criar um rio que tenha sempre água, fazendo pequenos açudes rebatíveis, que durante o Inverno desaparecem e durante o Verão sobem. Enquanto o rio tem água, até Maio, sobem um bocado os açudes, quando o rio começa a deixar de ter água, podemos abrir as comportas, por exemplo de Castelo de Bode. Faz-se essa gestão integrada dos recursos hídricos e conseguimos que, de Maio até Outubro, as águas de Castelo de Bode e restantes barragens circulem aqui no Tejo.”

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Manuel Campilho, empresário agrícola da Quinta da Lagoalva, à beira de um Tejo quase sem água Matilde Fieschi

O investimento previsto é de 4,5 mil milhões de euros (embora com 100 milhões seja possível começar a obra no espaço de quatro ou cinco anos, dizem os promotores) e, na frente agrícola, o objectivo é aumentar as áreas de regadio em 300 mil hectares nas regiões do Ribatejo, Oeste e Setúbal.

Um pouco mais acima, na zona de Vila Nova da Barquinha, Paulo Constantino, da Associação Ambientalista ProTejo, tem argumentos para contrariar os de Manuel Campilho e Jorge Froes: “Em 12 anos, a disponibilidade hídrica na bacia do Tejo reduziu-se em 25%. Há menos disponibilidade de água, mas, ainda assim, a suficiente para todos os usos e para fazer a água chegar ao mar e levar os nutrientes até à foz. O problema é como se usa essa água e o impacto que tem na bacia do Tejo portuguesa a gestão que fazem as hidroeléctricas espanholas. Entre Março e Junho [de 2021] esvaziaram as barragens até níveis mínimos unicamente porque o preço da energia no mercado espanhol estava altíssimo e queriam fazer lucro imediato.”

Um pouco por todo o país, o debate repete-se. De um lado agricultores, do outro, ambientalistas. Todos a olhar para a água. Em pano de fundo, a crise climática e uma certeza: no futuro haverá menos água disponível. Sabendo que, de toda a água que captamos, 70% é utilizada na agricultura – “As plantas não têm dentes, alimentam-se como? Bebendo, não é?”, lança Manuel Campilho –, a pergunta é que modelo agrícola é mais sustentável.

A maior parte da superfície agrícola nacional é ainda ocupada por uma agricultura de sequeiro, que depende essencialmente da água da chuva e da existente no solo, mas as áreas de regadio (cerca de 14% do total) têm vindo a crescer, revelando-se muito mais rentáveis (produzem em média cinco a seis vezes mais do que o sequeiro), e são, para muitos, o único futuro possível.

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Um pouco por todo o país, o debate repete-se. De um lado agricultores, do outro, ambientalistas. Todos a olhar para a água.

Alexandra Prado Coelho,Cátia Mendonça,Vera Moutinho

Portugal, “um milagre da meteorologia”

No Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IMPA), Miguel Miranda, que preside à instituição, mostra-nos os ecrãs. “Costumo dizer que Portugal é um milagre da meteorologia. Onde Portugal acaba é onde o deserto começa. O verde de Portugal é chuva, é precipitação. Chegámos ao fim de Fevereiro numa das situações de maior seca que alguma vez se verificaram nas nossas condições. A partir do início de Março, a situação alterou-se completamente, já temos os sistemas atlânticos a entrar pela península e, portanto, começou já a precipitação.”

É verdade que as secas são cíclicas, mas, com a crise climática, elas vão ocorrer com maior frequência. O World Resources Institute faz uma projecção para 2040 e coloca Portugal em risco elevado de stress hídrico (em que o consumo de água representa entre 40% e 80% das disponibilidades anuais), sendo o Sul muito mais vulnerável do que o Norte.

“Havendo uma mudança climática na Terra, há duas formas de nos adaptarmos. A primeira é movermos as populações, dizermos que isto vai ser uma região semideserta e vamos ter de sair daqui e ir para uma zona mais húmida”, explica Miguel Miranda. “A segunda é dizer que temos hoje uma capacidade de intervenção suficientemente grande para que, mesmo numa zona com condições semidesérticas, sermos capazes de montar um sistema ambiental, humano e social viável e sustentável.”

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Em Fevereiro deste ano Portugal estava em situação de seca meteorológica. Na imagem, a barragem de Vilar-Tabuaço, em Sernancelhe Miguel Manso

A água doce “não desapareceu, nem vai desaparecer”, sublinha Miguel Miranda. A quantidade “é sempre a mesma, porque ela não fica na atmosfera”. A distribuição é que é diferente e, por isso, “a forma como a usamos e transportamos é que vai ter que mudar”. E, se pensarmos na agricultura, o presidente do IPMA não tem quaisquer dúvidas: “Numa situação como a que vamos viver nas próximas décadas, de mudança climática, com a redução da precipitação e o aumento dos fenómenos extremos, seria cegueira as pessoas não compreenderem que a agricultura que pode existir é uma agricultura protegida”.

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Não está a falar de “voltar à loucura dos excessos de químicos”, mas, no que diz respeito à água, está a falar do que considera ser a inviabilidade do sequeiro. “Numa situação de grande alteração pluviométrica, provavelmente as culturas de sequeiro são perdidas, ponto. E depois arranja-se um subsídio para compensar; e o subsídio vem de que riqueza?”

O mesmo diz Jorge Froes, no nosso passeio por um Tejo sem água. “Este ano foi a prova de que o sequeiro em Portugal está morto. Quando se diz que vamos abandonar o paradigma do regadio e evoluir para a silvopastorícia, é impossível. O gado come as pastagens, as pastagens são de sequeiro, as pastagens morreram todas — o gado come o quê? Não come. Ou come silagem que foi feita onde? No regadio. A única agricultura que vamos ter em Portugal é o regadio. Agora, compete ao país decidir se a quer ter ou não.”

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Manuel Campilho (à esq.) e Jorge Froes, da Associação para a Promoção do Desenvolvimento Sustentável do Tejo, promotora do Projecto Tejo Matilde Fieschi

Andar para o futuro

No Algarve, na zona de Castro Marim, a visão das agricultoras da associação agro-ecológica Al Bio é completamente diferente. “Existem outros modos de ser agricultor”, diz Rosa Dias, da Quinta da Fornalha. “O modelo de agricultura familiar não está obsoleto nem condenado a desaparecer.” Quer mostrar-nos o que são os dois modelos, lado a lado – o familiar, biológico, predominantemente de sequeiro, que é o dela, e o da agricultura intensiva, que é o do vizinho, produtor de abacates que são, essencialmente, para exportação.

As áreas de abacateiros não param de crescer no Algarve (nos últimos vinte anos a área cresceu dez vezes) e isso é o maior pesadelo para Rosa Dias, Ângela Rosa, Elisa Campos e Inês Mesquita, que vêem ameaçados os seus pomares de sequeiro, herança familiar, com grande diversidade de espécies agrícolas — só de figos, Ângela Rosa tem na sua propriedade mais de 13 variedades.

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O problema não é só o consumo de água, diz Ângela Rosa, é a contaminação dos aquíferos por uma agricultura mais intensiva e não biológica. “É um mar de agricultura intensiva muito próximo do litoral”, alerta. “Ali” — e aponta para uma zona para lá da plantação de abacateiros — “é já a zona de infiltração do aquífero de São Bartolomeu, que está carregadíssimo de nitratos.”

Será a agricultura das jovens da Al Bio uma coisa do passado, um modelo condenado? Voltamos a ouvir Miguel Miranda: “Se dissermos que o Alentejo não tem capacidade para ter culturas nenhumas além do montado e que, portanto, vamos viver do montado, isso não é possível, não tem cabimento. Quantos habitantes poderiam viver do montado? Vender cortiça? Tem que se perceber que o futuro não é voltar a um passado que nunca existiu.”

No meio do seu pomar de citrinos e de alguns abacateiros — que precisam de menos água, mesmo que isso signifique ficarem mais pequenos que os do vizinho de Rosa Dias —, Ângela Rosa reage: “Também não podemos dar a ideia de que o passado é que era bom. Nós estamos a inovar, estamos a fazer biomassa, a não utilizar pesticidas, a cultivar em harmonia com a biodiversidade, a fauna e flora nativas, a tentar reduzir o nosso consumo de água, a ter tecnologia nas nossas explorações que monitorize o que está a acontecer, quais as melhores horas para regar, por exemplo.”

“O meu modelo de negócio não está centrado no lucro, tem o objectivo de tentar ser sustentável”, sublinha Rosa Dias. E Ângela Rosa reforça a ideia, com a sua aparentemente inesgotável energia: “Somos o legado, a resistência e provamos que é possível viver, que é rentável, e estamos aqui para andar para o futuro.”

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Rosa Dias, agricultora biológica, juntou-se com outras produtoras do Algarve na defesa do sequeiro Miguel Manso

Estudar o solo

Um estudo sobre o uso da água na agricultura em Portugal, feito pelo C-Lab para a Fundação Calouste Gulbenkian, mostra que ainda coexistem agricultores com perfis muito distintos. Apenas 3%, os chamados “mentores”, fazem um planeamento a longo prazo e revelam uma “sensibilidade à água marcada por projecções e estudos científicos”; no outro extremo estão os “condicionados”, 38%, que planeiam a curto prazo e têm uma “sensibilidade à água marcada pela sua experiência pessoal e próxima”.

Em Vale d’Arem, no Alentejo, visitamos um dos mais de 40 olivais da Nutrifarms (Sovena), onde Paulo Carapinha nos mostra o que é esta “agricultura de precisão” que faz com que, mesmo num modelo intensivo e de regadio, haja uma gestão eficaz da água.

Aqui, o Alqueva modificou claramente a paisagem, e a agricultura intensiva — os olivicultores preferem o termo “olival moderno em sebe” — aumentou muito, com o olival a ocupar 61% da área regada pela barragem, e os amendoais (14%) em crescimento acelerado, seguidos pela vinha e o milho (ambos a ocuparem 5%), as forrageiras (4%) os hortícolas e os cereais (ambos 3%).

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Por isso, e para termos uma visão mais ampla de todo o processo, Gonçalo Simões, director executivo da associação de olivicultores e lagares Olivum, convida-nos a passar pela barragem do Pisão, uma das que compõem o sistema da Edia [Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva], para percebermos como é que a água chega ao olival. “Aqui vêem-se bem duas realidades: de um lado temos o olival em sebe e do outro o espelho de água que vai abastecer essas culturas. Em ano de seca, o Alqueva nunca baixou dos 80% e é o único sistema de barragens do país que permite regar durante quatro anos mesmo que não chova. Não há muitas barragens no mundo que consigam aguentar quatro anos sem uma gota de água.”

Esta água é depois conduzida, através de uma central de bombagem, apoiada por painéis fotovoltaicos para reduzir os custos energéticos, até ao olival, onde é distribuída por um sistema gota a gota. Pedro Carapinha, da Nutrifarms, explica como tudo funciona: “A primeira coisa a fazer numa plantação é estudar o solo. Fazemos um raio X à herdade, com uma tecnologia de precisão que nos dá um mapa com os diversos tipos de solo, e a partir daí fazemos o projecto de rega, que divide os blocos de rega consoante o tipo de solo.”

A água do Alqueva paga-se, e daí, o interesse dos agricultores e gastar apenas a necessária. Para isso, usam sondas de humidade que “permitem saber o que se passa no solo e se é ou não necessário regar”, e dendómetros, agulhas ligadas ao tronco da árvore para medir o diâmetro — “se aumenta, é sinal de que a planta está a absorver água, está saudável e a crescer, se diminuir, é sinal de que a planta está em stress hídrico e aí temos que aplicar maior quantidade de água.”

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Olival moderno em sebe da empresa agricola Nutrifarms, do grupo Sovena Nuno Ferreira Santos

Com o sistema gota a gota, diz Pedro Carapinha, “mais de 90% da água que estamos a debitar no solo é absorvida pela planta”, ao contrário do que acontece com uma rega por mangueira, em que “grande parte da água vai escorrer para o lado e perder-se”.

O estudo da Gulbenkian avança com alguns números a partir do universo de agricultores que foram ouvidos: o gota-a-gota é usado por 65% deles (correspondendo a 71% da superfície de regadio), a rega por aspersão é usada por 35% (48% da superfície) e a por gravidade por 16% (9% da superfície) — a duplicação dos números deve-se ao facto de alguns agricultores terem vários sistemas de rega.

“Tem havido muito avanço tecnológico nos últimos anos”, reforça Gonçalo Tristão, da Cotr, a parceria público-privada que dá apoio aos agricultores, nomeadamente na gestão da água. “A agricultura portuguesa gastava na década de 60 do século passado cerca de 16 mil metros cúbicos de água por hectare e hoje gasta três a quatro mil.”

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Sistema de rega gota-a-gota no olival intensivo da Nutrifarms, servido pela água do Alqueva Nuno Ferreira Santos

Empatia pelos agricultores

A crescente eficiência no uso da água e outras práticas (como o enrelvamento entre as oliveiras, que permite usar outras plantas, selvagens e autóctones, para ajudarem à infiltração de água no solo) são a aposta de alguns dos grandes produtores do Alqueva. Mas a pergunta mantém-se: pode-se aumentar mais a área do regadio sabendo-se que vamos ter menos água no futuro?

“A área de regadio aqui no Alqueva está delimitada”, responde Pedro Carapinha. “Se não for o olival, vai ser outra cultura, e garanto-lhe que o olival é a que menos água consome. Até nisso é mais sustentável que outro tipo de culturas.” Gonçalo Tristão lembra que, no início, havia a expectativa de a aposta ser mais no milho, “uma cultura muito enraizada na agricultura portuguesa”, mas que “gasta oito a nove mil metros cúbicos por hectare enquanto o olival gasta três ou quatro”.

“É importante ter alguma empatia com os agricultores e perceber que eles não podem produzir o que não paga a actividade económica”, acrescenta Gonçalo Simões. “O agricultor é um agente económico e tem tanto direito a ganhar dinheiro como outro sector da economia. Os agricultores por vezes sentem-se quase agredidos porque a sociedade civil, que muitas vezes mora nos grandes centros urbanos e pouco se desloca ao mundo rural, não tem essa percepção.”

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Pedro Carapinha, olivicultor da Nutrifarms, assegura que o olival é uma das culturas que consome menos água por hectare Nuno Ferreira Santos

Continuam, no entanto, a coexistir visões muito diferentes do impacto do Alqueva. Luís Silva, professor do Instituto Superior de Agronomia (ISA) e consultor para o sector agrícola do estudo da Fundação Gulbenkian sobre o uso da água, não hesita em dizer que “é difícil questionar o impacto e o sucesso” do empreendimento. “Basta olhar para o que era aquela região há 30 anos e para o que é agora. É inquestionável.” Quanto à escolha de culturas, considera que as predominantes são “as mais bem adaptadas ao clima e que gastam menos água”. Não consegue sequer compreender as críticas à dimensão do olival. “Temos finalmente uma cultura que é competitiva e dizemos ‘é demais, não façam’? É dar tiros nos pés.”

Francisco Ferreira, da Zero, tem uma visão que está nos antípodas desta, mesmo tendo em conta a maior eficiência: “Ok, ali poupo água, mas se quero expandir mais não sei quantos hectares, mesmo com um uso eficiente, vou precisar de muito mais água. O Alqueva estava previsto inicialmente para 130 hectares, já estamos a falar de 200 mil e mais dezenas de milhares de hectares de regadio no país. Temos que fazer uma reflexão sobre o impacto deste modelo agrícola.”

Abacate, um sugador de água

Mais tecnologia, maior eficiência, mais controlo e fiscalização. Esse é o caminho apontado pelo Ministério da Agricultura, e pela nova Política Agrícola Comum (PAC) para uma produção agrícola que se quer sustentável. No gabinete da ministra da Agricultura e da Alimentação, Maria do Céu Antunes, no Terreiro do Paço, em Lisboa, o futuro passa necessariamente pelo aumento das áreas de regadio no território nacional: “Em Portugal, cada hectare de regadio produz cinco vezes mais do que um hectare de sequeiro. Para equilibrar a nossa balança comercial, temos de saber onde podemos aumentar a área irrigada para podermos ser competitivos”, diz a ministra. O que não significa, garante, um abandono do sequeiro. “Temos de fazer coexistir sistemas de sequeiro com sistemas de regadio. Acreditamos muito nessa complementaridade e foi nessa perspectiva que desenhámos o plano estratégico da PAC.”

Mas não se pode olhar para o território nacional como se fosse todo igual. “Em Portugal temos quase dois países”, diz José Pimenta Machado, vice-presidente da Associação Portuguesa do Ambiente (APA). “Há uma linha aqui no Tejo que divide o Sul mais seco, em que a escassez de água e as secas são estruturais, de um Centro e um Norte mais húmidos.”

“A seca sempre atingiu o Algarve”, confirma Cláudia Sil, ambientalista da Plataforma Água Sustentável (PAS). Mas uma coisa é a seca e outra é a escassez — esta refere-se à “quantidade de água que está disponível no território”, e que depende de vários factores, da pluviosidade, sim, mas também dos usos dados à água. É aí que entra a polémica dos abacates, que, vindos de um clima tropical, são grandes consumidores de água — embora, uma cultura tradicional algarvia, como os citrinos, consuma aproximadamente a mesma quantidade.

O Algarve não tem um Alqueva e a pressão provocada pelas culturas de regadio vai incidir sobretudo sobre os já depauperados aquíferos, as águas subterrâneas que, dizem todos os especialistas em gestão hídrica, devem ser preservadas o mais possível. Na região algarvia, contudo, os aquíferos estão sobreexplorados. Cláudia Sil cita o Plano de Eficiência Hídrica do Algarve para dizer que “a agricultura de regadio é responsável por 60% da água consumida no território”.

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Cláudia Sil, da Plataforma Água Sustentável, alerta que o consumo hídrico no Algarve é já muito elevado para as reservas que existem na região Miguel Manso

E se a ela se somarem os campos de golfe, estamos a falar de dois terços do total de água. “Setenta e cinco por cento desses recursos são subterrâneos, segundo estimativas feitas com base na área. Só que a área de regadio tem sido muito ampliada”, diz a ambientalista, concluindo que “o consumo é muito elevado para aquilo que são as reservas hídricas conhecidas neste momento”.

Vamos reter-nos na frase “conhecidas neste momento” para fazer uma pergunta: até que ponto conhecemos as disponibilidades hídricas do país, hoje e no futuro? Pimenta Machado, da APA, considera que há “um antes e um depois” do estudo apresentado no final do ano passado e coordenado por Rodrigo Proença de Oliveira. Antes dele, era grande o desconhecimento sobre que água temos disponível, o que complicava muito a tomada de decisões políticas. E agora?

Pela primeira vez “foi aplicada uma metodologia consistente a todo o país que abrange as disponibilidades e as necessidades de água”, explica Rodrigo Proença de Oliveira. “Temos agora a possibilidade de prever cenários [climáticos] para daqui a 20, 30 anos, até ao final do século.” E, tanto quanto sabemos, o clima mediterrânico em Portugal vai acentuar-se, com uma “variabilidade enorme” entre anos mais húmidos e anos mais secos, o que “é uma dificuldade imensa para a gestão dos recursos hídricos”.

Não se esperem conclusões revolucionárias ou decisões radicais. É preciso olhar com atenção para cada região e fazer, também aqui, uma política de precisão, tendo consciência de que “a água é um factor condicionante da nossa economia”. “Temos de discutir que projectos podem avançar e quais os que não têm viabilidade, quer económica, quer ambiental”, afirma Proença de Oliveira. “Ninguém quer proibir a rega, o regadio é o que traz produtividade e retorno aos agricultores, é natural que a comunidade agrícola queira apostar no regadio, há sítios onde isso pode acontecer, outros em que talvez seja possível reduzir as perdas existentes, aqui e ali podemos construir uma barragem, mas todas as opções estão em aberto.”

Guardar água

Mais barragens serão a solução? Há quem defenda que sim, claramente. Por exemplo, Luís Silva, do ISA: “O argumento contra o armazenamento da água é difícil de justificar num clima como o nosso, em que chove três meses num ano e noutros três meses não chove nada. É fundamental armazenar e aí o investimento devia ser superior.”

O mesmo diz Gonçalo Tristão, do Cotr (Centro Operativo e de Tecnologia de Regadio), com quem conversamos junto da barragem do Pisão, no dia da visita ao olival do Vale d’Arem: “Infelizmente não temos tido capacidade de retenção. O que muitos opinam, eu incluído, é que devíamos ter mais. Retemos em barragens apenas 20% de tudo o que aflui nas bacias. Não quer dizer que façamos Alquevas em todo o país, mas temos de ter mais capacidade para reter água que é precisa, nomeadamente para a agricultura.”

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Rodrigo Oliveira, responsável pelo estudo das disponibilidades hídricas em Portugal FIESCHI MATILDE

No Algarve, Rosa Dias e as agricultoras da Al Bio estão de acordo que, com chuvadas grandes concentradas em poucos momentos do ano, será útil ter “mais barragens e mais segurança”. Mas alerta: “O que não se pode fazer é, por termos mais barragens, aumentarmos o perímetro de rega, e de repente já não chega. Não podemos andar sempre nesta brincadeira.”

Voltamos ao Projecto Tejo e à conversa com Manuel Campilho e Jorge Froes, que aponta para o rio quase inexistente que corre ao nosso lado. “Passam aqui quatro Alquevas, três mil milhões de metros cúbicos por ano, dos quais só aproveitamos 5%. O resto vai tudo para o mar.”

Esse é precisamente o ponto que Francisco Ferreira, da associação ambientalista Zero, quer destacar: “Temos usos de água muito diferentes, para a agricultura, indústria, consumo humano. Mas há outros usos absolutamente cruciais do ponto de vista económico e que às vezes parece que os esquecemos por completo. Eu preciso de água doce nos rios, porque tenho pesca, actividades turísticas, valências cruciais. Se não tiver água doce a chegar aos estuários, que são maternidade para 60% das espécies oceânicas, deixo de ter pesca. Achar que a água que vai para o oceano é uma água que se está a perder, é completamente errado não apenas do ponto de vista da sustentabilidade, mas também do ponto de vista económico.”

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Francisco Ferreira, da ZERO, diz que é preciso repensar o modelo da agricultura intensiva FIESCHI MATILDE

É vital, defende o ambientalista, garantir os caudais ecológicos e os serviços dos ecossistemas e é isso que, na sua opinião, não acontece quando se aposta numa agricultura intensiva em vastas áreas dependentes da rega. Reconhece que é necessário “olhar para a agricultura de sequeiro com uma incerteza maior, mas com a necessidade de se adaptar à nova realidade climática”. E, mesmo com uma produtividade menor, é importante reconhecer “outras valências” que este modelo agrícola tem, e “compensar os agricultores por elas”.

“Mas dizer desisto do sequeiro e por isso preciso de mais regadio não tem sentido, quando a água, que é a base do regadio, tende a ser cada vez mais escassa”, sublinha Francisco Ferreira, deixando uma pergunta: “Como é que vou apostar no regadio num país com uma perda de 40% da água nas próximas décadas no Sul, e de 10% ou mais no Norte?”

Por isso, o Projecto Tejo preocupa-o. “Claro que é um erro. Essa água toda que vou usar para a agricultura é água que vai deixar de chegar ao estuário. Quando começar a deixar de ter sardinha e carapau, quando deixar de ter estuário, aí percebemos que errámos.” Jorge Froes contesta veementemente, garantindo que os açudes “vão criar uma estrada de água contínua”. “O que [os ambientalistas] esquecem é que o Tejo chega a ter hoje em dia, em Agosto, um metro cúbico por segundo. Isso não é caudal ecológico nenhum, é um esgoto.”

Paulo Constantino, o ambientalista da ProTejo, está de acordo com Francisco Ferreira: “Esses 2300 hectómetros cúbicos que vão ser necessários para irrigar a zona da lezíria, do Oeste, significam que deixa de chegar água suficiente ao mar, as águas do estuário do Tejo vão alterar-se e isso tem impactos nos ecossistemas. Essa quantidade que vai ser retirada ao Tejo é imensa. Temos de ter equilíbrio no uso que fazemos da água.”

O Tejo como problema

Mesmo que os açudes a construir no rio sejam rebatíveis, como prevê o projecto, “no Inverno, quando estiverem levantados para reter água, não vão deixar passar as espécies e sedimentos até ao estuário”. O rio deixará de correr livremente e “vai transformar-se numa série de charcas e espelhos de água de Abrantes até Lisboa.”

Como alternativa, defende “a captação de água directamente do rio, com custos energéticos baixos, distribuídos pelos vários agricultores” e sem o cenário de um aumento de 300 mil hectares de áreas de regadio, embora admita um alargamento menor das zonas regadas. A par disso, diz, é necessário renegociar com Espanha a Convenção de Albufeira, que define a gestão conjunta do Tejo e que foi “mal negociado”. O que Portugal fez nesse acordo de 1998 “foi entregar a gestão da bacia do Tejo às hidroeléctricas espanholas”, o que impede a existência de “caudais ecológicos regulares”.

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O açude insuflável no Tejo, na zona de Abrantes, é semelhante aos propostos pelo Projecto Tejo. Devemos apostar em mais formas de reter água? Matilde Fieschi

A este problema soma-se outro. Quando Espanha esvazia as suas barragens, “com o calor dos meses de Verão e a pouca água e com os nutrimentos e substâncias químicas que estão nas barragens de Espanha, gera-se um boom de algas com cianobactérias prejudicais à saúde, que cobriam quase toda a albufeira e que foram sendo enviadas, a pouco e pouco, para Portugal, afectando a qualidade das nossas massas de água”.

Renegociar o acordo com Espanha, para garantir a estabilidade dos caudais ecológicos, é a proposta de Paulo Constantino, mas Pimenta Machado, da APA, considera que não é esse o caminho. “Sabemos que no futuro haverá menos água em Portugal e menos água em Espanha. Se o acordo foi negociado em 1998, num contexto em que havia mais água, e se o vou rever hoje, quando há menos, não me parece que isso nos seja favorável”.

Maria do Céu Antunes garante que o seu ministério está atento ao problema. “Estamos a trabalhar em conjunto [com Espanha] para, no domínio da água, podermos olhar para o nosso futuro colectivo, utilizando os nossos recursos de forma mais sustentável, mais equilibrada. Vejo isso como um desafio e já o partilhei com o meu colega espanhol no sentido de encontrarmos plataformas de trabalho que nos comprometam.”

Quando ao Projecto Tejo — que, “tal como foi apresentado, tem uma dimensão imensa” – está ainda em estudo, sublinha a ministra. “O rio Tejo é o maior activo que temos e é internacional. Tem um problema de regularização do caudal que tem que ser resolvido. E tem um problema gravíssimo com a cunha salina, que tem que ser travada.” O que acontece é que, com o fraco caudal, a água do mar vai entrando rio dentro e começa já a comprometer algumas culturas agrícolas junto ao estuário.

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Os promotores do ProjectoTejo garantem que com a construção de seis açudes rebatíveis, a água voltará a correr no leito do rio. Matilde Fieschi

Complicada também é a situação dos mochões, as pequenas ilhotas do Tejo, que vêm sofrendo rombos, estando alguns parcialmente inundados e com solos salinizados. “Há todo um problema ambiental grande que tem repercussão na agricultura e que temos de encarar”, afirma Maria do Céu Antunes.

Também a APA está a trabalhar pensando no Tejo. Pimenta Machado afirma que para combater o problema da cunha salina está a ser desenvolvido “um projecto muito inovador” que será apresentado “em breve” pelo Ministério do Ambiente e cujo objectivo é “tornar menos vulnerável” o troço de rio com cerca de 50 quilómetros, entre Vila Velha de Ródão e a foz do Zêzere, que é “ainda muito dependente da água que vem de Espanha”.

O que é preciso em todo este debate, defende Pimenta Machado, é “não diabolizar a agricultura”. E, quando se pensa no futuro, e se olha para a agricultura de sequeiro e para a de regadio, o que importa não é contrapor uma à outra ou vê-las como mutuamente exclusivas. “É preciso adaptar as opções dos agricultores à água que o território tem. É assim, e não o contrário, senão a coisa vai correr mal.”

Cabe à APA definir as regras e atribuir as licenças, definidas “por massa de água”. “Nós vamos ver as regras e dar os títulos para as campanhas de rega em função da água que o território tem. Quando atribuirmos os títulos das captações, só vamos dar a água que o território tem, e não mais do que essa. [Os agricultores] vão ter de fazer escolhas.” Fundamental é “medir, controlar, fiscalizar, monitorizar”. Depois, é simples: “A água que têm é esta e não é outra. Agora escolham.”