A Amazónia e os crimes contra a humanidade

Há décadas que decorre na Amazónia um descarado massacre de pessoas, animais, plantas. Crimes contra a humanidade. Quem disso pode, em consciência, duvidar? “Aquele que aceita o mal sem protestar, coopera com ele”, soou um dia da voz grave de Martin Luther King Jr.

O fotojornalista Lalo de Almeida documentou, desde 2009, o desmatamento da floresta amazónica provocado pelo desmedido desflorestamento e gananciosa exploração mineira e de recursos naturais, uma tragédia autorizada e incentivada por políticas regressivas do ponto de vista ambiental. E assim, à vista de todos, acontecem diariamente atentados à vida (e ao modo de vida) das pessoas que compõem os 350 grupos indígenas diferentes que ali habitam e a toda uma área de uma extraordinária biodiversidade, com cerca de três milhões de espécies de plantas e animais, incluindo flora e fauna endémicas e em perigo de extinção. As fotografias de Lalo de Almeida foram realizadas para o jornal Folha de São Paulo/agência Panos Pictures e fazem parte do fascinante e simultaneamente perturbador projeto Distopia Amazónica, premiado na categoria Projetos de Longa Duração da América do Sul, no World Press Photo 2022.

Numa das imagens captadas pela objetiva de Lalo (6 de Abril de 2013), um grupo de mundurucus​, envergando trajes típicos e com tróleis pela mão, aguardam o embarque no aeroporto de Altamira após protestarem contra a construção da barragem de Belo Monte no rio Xingu. O protesto, que contou com o apoio de ambientalistas e de organizações não governamentais, de nada valeu. A barragem de Belo Monte, a quarta maior do mundo, foi concluída em 2019, desviando mais de 80% da água do seu curso natural, causando danos no ambiente — muitos afluentes secaram, a navegabilidade foi afetada de forma importante e a quantidade de peixe diminuiu substancialmente — e na sociedade.

O acentuado aumento da população criou problemas de infraestruturas, na educação, saúde, habitação e saneamento básico. Uma notícia publicada a 19 de março pelo jornal Brasil de Fato revela que parte da população sofre com a falta de água. Água roubada para uma barragem.

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Membros da comunidade mundurucu aguardam o embarque no Aeroporto de Altamira, em Pará, Brasil Lalo de Almeida/World Press Photo 2022

Nada me move contra o progresso e entendo a necessidade de produzir energia “limpa”, mas a ambição não deve precipitar os homens ao ponto de os fazer esquecer que “na natureza há duas leis que tudo regem: a lei da vida e a lei da morte”.

Noutra imagem, datada de 13 de Agosto de 2016, um indígena da aldeia Yawalapiti caminha por entre o fumo dos incêndios florestais que atingiram o Parque Indígena do Xingu. Além do impacto da acumulação de gases de efeito estufa, o desmatamento nos limites do parque provocou um aumento da temperatura e alterou o regime hidrológico, tornando o ambiente mais seco, o que inviabilizou as culturas de subsistência tradicionais e tornou as comunidades cada vez mais dependentes de alimentos industrializados. Parece mentira, não é? Garanto-lhe, porém, que leu bem e que é a mais pura verdade: as comunidades indígenas que habitam o pulmão do mundo estão dependentes de alimentos industrializados.

“Sou um cientista climático e um pai desesperado. Como é que posso defender as minhas ideias com mais afinco? O que será preciso? O que é que eu e os meus colegas podemos fazer para impedir que esta catástrofe se desenrole à nossa volta com uma clareza tão excruciante? (…) Por necessidade, e após esforços exaustivos, juntei-me às fileiras daqueles que abnegadamente arriscam a sua liberdade e põem os seus corpos em risco pela Terra, apesar do ridículo dos ignorantes e do castigo de um sistema legal colonizador concebido para proteger os interesses dos ricos que matam o planeta. Chegou a altura de todos nos juntarmos a eles. O sentimento de solidariedade é um bálsamo maravilhoso.”

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Um homem caminha perto da aldeia de Yawalapiti, entre o fumo dos incêndios que atingiram o Parque Indígena Xingu, na Amazónia brasileira Lalo de Almeida/World Press Photo 2022

Este trecho faz parte de um artigo de opinião assinado por Peter Kalmus, cientista climático do Laboratório de Propulsão a Jato da NASA, no jornal britânico The Guardian. Dias antes, Kalmus foi detido por se ter acorrentado, juntamente com outros cientistas, nas portas de entrada de um prédio da JP Morgan Chase, que os protestantes acusam de ser um dos maiores financiadores da indústria de combustíveis fósseis. Ainda no local, Kalmus, visivelmente emocionado, desabafou: “Estou aqui porque os cientistas não estão a ser ouvidos. E estou disposto a correr riscos por este lindo planeta. Pelos meus filhos. Fazemos isto por todas as crianças do mundo, todos os jovens, todas as pessoas do futuro. Isto é muito maior do que qualquer um de nós.”

Não há dúvida de que o é. E, no entanto, há décadas que decorre na Amazónia um descarado massacre de pessoas, animais, plantas. De acordo com o Conselho independente para as Relações Exteriores, o Brasil perdeu cerca de um quinto da sua cobertura florestal nos 50 anos anteriores a 2019. E desde há três anos que a devastação da Amazónia brasileira decorre ao seu ritmo mais rápido de sempre numa década. Crimes contra a humanidade. Quem disso pode, em consciência, duvidar? “Aquele que aceita o mal sem protestar, coopera com ele”, soou um dia da voz grave de Martin Luther King Jr.

António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas (ONU), declarou há poucos dias que “investir em novas infraestruturas de combustíveis fósseis é uma loucura moral e económica e que os activistas climáticos são por vezes retratados como radicais perigosos, mas os radicais verdadeiramente perigosos são os países que estão a aumentar a produção de combustíveis fósseis”.

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Lalo de Almeida/World Press Photo 2022

Na próxima década, se nada for feito, as emissões de gases atmosféricos subirão 14%. E para se limitar o aquecimento mundial a 1,5 graus Celsius, o mundo terá de reduzir as emissões em 45% até 2030. Se o aquecimento global chegar aos dois graus Celsius, a recuperação climática será “impossível” — a palavra é do próprio António Guterres — e até três mil milhões de pessoas irão sofrer com a escassez crónica de água, 80 milhões irão passar fome e 4,1 milhões de crianças terão problemas cognitivos devido à subnutrição. Perdoem-me o realismo, mas é o fim do mundo como o conhecemos. Seguimos cantando e rindo como se fosse mentira?

Um dos sonhos do meu filho é visitar a Amazónia. Enquanto imagino formas de o ajudar a concretizar o sonho, observo uma fotografia de Lalo, captada a 24 de Agosto de 2020, de um desflorestamento recente em Apuí, na linha de frente da expansão agropecuária. Quem não verter lágrimas perante o devastador cenário de centenas de árvores estendidas pelo chão, quais corpos moribundos num cenário bélico, dificilmente terá sentimentos de humanidade no coração.

Desanimado, desligo o computador e pergunto-me a mim próprio, caso a viagem algum dia se concretize, que Amazónia irá o João encontrar.

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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