O problema é que depois de ter interrompido a gravidez senti-me bem

Desculpem, mas foi mesmo preciso um grande azar para engravidar logo ao primeiro disparo. Ou não. São coisas que acontecem ou podem acontecer a todas. O problema é que depois de ter feito a interrupção da gravidez senti-me bem, aliviada.

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Felicity Lynn/Unsplash

Não acredito que alguma mulher vá de ânimo leve ao hospital ou à clínica pedir que lhe interrompam a gravidez. Interromper uma gestação é uma decisão difícil e que tem sempre um motivo, seja ele qual for, que só à própria diz respeito. Por isso, quando a minha mãe, de terço em riste, me chamou “criminosa”, que tinha dado cabo de uma vida humana, e me amaldiçoou para futuras gestações com um “Deus vai castigar-te de certeza!”, não pude deixar de sentir revolta e de lhe ver o limite da maternidade e da inteligência.

Podem perguntar-me por que motivo lhe fui contar este acontecimento, sabendo de antemão aquilo com que teria de lidar. A resposta é (e talvez seja bastante inconsciente): procurava qualquer espécie de punição para o meu acto. Estava zangada comigo por estar contente, sabia que não havia outra opção. Não quero ter filhos, não quero ser mãe. A gravidez aconteceu devido a um acidente, nunca me tinha acontecido tal coisa, sempre fui cautelosa.

Não sei porque me deixei levar naquele dia. O tipo não gostava de usar preservativo, dizia que fazia alergia ao látex e eu ri-me, noutra circunstância teria pedido para se retirar e ir dar uma volta ao bilhar grande, mas naquele dia ri-me e deixei-me ir, até hoje não percebo o motivo. Nunca esperei que me fosse acontecer uma coisa destas: come on, foi apenas um deslize, sou uma mulher atinada.

Desculpem, mas foi mesmo preciso um grande azar para engravidar logo ao primeiro disparo. Ou não. São coisas que acontecem ou podem acontecer a todas. O problema é que depois de ter feito a interrupção da gravidez senti-me bem, aliviada. E o facto de me sentir bem fez-me sentir mal; mal comigo própria, com os valores que sempre me ensinaram.

Evangelizada pela minha mãe para a maternidade. O investimento que fez em tachos e panelinhas e cozinhas e bebés chorões para aprender a mudar as fraldas, coitada, percebo a frustração, mas não, não quero ser mãe, quero ser apenas eu. Quando lhe disse “mãe, fiz um aborto”, vi-lhe os olhos a faiscar de desilusão, vergonha e raiva. Na cabeça dela é mesmo um acto inconcebível, Deus fez as mulheres para trazer crianças ao mundo. Pude ver como de filha passei a assassina, e pude por fim sentir-me mal, correspondendo finalmente à emoção que seria de mim expectável.

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