A autonomia do Ministério Público sem dinheiro é “ilusória”, afirma Lucília Gago

A procuradora-Geral da República critica o “expressivo e persistente défice de recursos materiais e humanos” e reivindica autonomia financeira do MP. O bastonário da Ordem dos Advogados alerta para a falta de confiança na justiça.

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Daniel Rocha

Tal como esperado, a Procuradora-Geral da República aproveitou a abertura do ano judicial para apontar a falta de meios materiais e humanos no Ministério Público, mas pondo mesmo o dedo na ferida da autonomia desta magistratura, considerando-a “insatisfatória e até ilusória ao não contemplar a vertente financeira”.

No segundo discurso da tarde no Supremo Tribunal de Justiça, Lucília Gago começou por elogiar a “magistratura singular, autónoma, hierarquizada, de potencialidades inigualáveis”, com “espírito de corpo único e de unidade na acção”, conferindo-lhe uma “dimensão essencial” no Estado, e na justiça penal em particular.

“Potencialidades que vêm sendo condicionadas, por vezes severamente, por um expressivo e persistente défice de recursos materiais e humanos, imprescindíveis para a cabal prossecução das suas atribuições, a justificar a afirmação de ser a autonomia do Ministério Público insatisfatória, e até ilusória, ao não contemplar a vertente financeira”, afirmou.

Lucília Gago apontou o “grave défice de quadros”, perante um avultado “ritmo de jubilações”, mas também uma “generalizada insuficiência da afectação de oficiais de justiça e de recursos materiais e humanos” para responder às “cada vez mais imprescindíveis perícias financeiras, contabilísticas e informáticas” que a levam a queixar-se de “verdadeira asfixia” nalguns domínios.

Um deles é a da cibercriminalidade, onde a procuradora-geral da República nota ter havido um “muito significativo aumento das entradas e pendências de inquéritos em 2020 e 2021”, em consequência da pandemia. “Têm-se procurado melhorar os muito limitados recursos disponíveis”, explicou Lucília Gago, defendendo porém que devia ser considerado, “de forma muito séria”, a evolução deste fenómeno em Portugal.

“Apenas o reforço da qualidade e quantidade dos equipamentos informáticos e dos meios digitais disponíveis, particularmente num tempo em que o teletrabalho gera maior nível de utilização dos sistemas informáticos e novas exigências a nível da fluidez e segurança das comunicações electrónicas poderá, de modo efectivo, assegurar a transição digital na área da justiça”, defendeu.

A concluir, Lucília Gago deixou uma mensagem mais ou menos cifrada: “O Ministério Público não se deixará confundir ou perturbar pelo ruído dispersivo não raras vezes semeado, pelo caudal saturado e confuso da informação, pela poluição do pensamento dificultador da acção, pelos ardilosos juízos distractivos que engendram engenhosas encruzilhadas e colocam dificuldades acrescidas”.

Bastonário alerta para falta de confiança na Justiça

A falta de investimento na Justiça foi também abordada pelo bastonário dos Advogados, Luís Menezes Leitão, que considerou ser essa a causa da falta de confiança na justiça, recentemente apontada num inquérito da DECO que coloca o sistema judiciário como a instituição em que os portugueses depositam menos confiança.

“Existe neste momento uma absoluta falta de recursos humanos no nosso sistema judiciário. Temos 1960 juízes, mas só 1801 estão em funções nos tribunais, sendo que grande parte dos restantes exercem presentemente funções não judiciais. No Ministério Público faltam 195 magistrados. E temos 1000 funcionários judiciais a menos”, contabilizou. Disse anda que “a situação tende a agravar-se, como se vê pelas notícias de que o Centro de Estudos Judiciários perdeu 2/3 dos seus candidatos em dez anos”, mas também pela sucessão de jubilações de magistrados, “sendo notório que uma das causas será a sua desmotivação”.

Menezes Leitão revelou que também na Ordem dos Advogados se nota já “um abaixamento do número de candidaturas ao Sistema de Acesso de Direito e aos Tribunais”, o que atribuiu à “desconsideração com que o Estado está a tratar os nossos colegas”, sobretudo em matéria de oficiosas: “O Governo recusou-se sistematicamente a aplicar a Lei 40/2018, de 8 de Agosto, que prevê a actualização anual das suas remunerações, as quais permanecem congeladas há anos”.

“Tudo isto resulta numa profunda violação do direito dos cidadãos à justiça e numa total ineficácia das respostas para os sérios problemas existentes”, afirmou, criticando a falta de funcionários nas esquipas especializadas em violência doméstica e a “avalanche de prescrições na justiça”, não só devido à falta de magistrados, mas também “à escassez de recursos humanos nas perícias e nos oficiais de justiça”, lembrando o caso de falta de notificação de Vale e Azevedo por atrasos nas traduções dos documentos.

“É manifesto que, enquanto a Justiça funcionar nestes termos, a sua credibilidade junto dos cidadãos será cada vez mais reduzida”, vincou.

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