As urgências hospitalares não mudam sem resolução da demanda

Devia-se premiar o doente não emergente que recorre ao centro de saúde ou penalizar quem insiste, em prejuízo de todos, no recurso ao hospital sem razão. Os centros de saúde também deveriam ter incentivos ou penalizações, caso os seus utentes “verdes” ou “azuis” da “triagem de Manchester” cumprissem ou não a regra de a eles recorrerem em primeiro lugar.

Na Sexta-feira Santa, as manchetes dos jornais repartiam o caos da guerra da Ucrânia, com as demissões dos chefes de Medicina Interna no Hospital das Caldas da Rainha. São mais uns médicos que capitulam, depois de terem aguentado quase tudo, nas trincheiras da guerra contra a covid-19. É pena chegarmos a isto, mas outros se juntarão a estes, quebrados pelo cansaço, mas ainda mais pelo golpe fatal da perda da esperança numa mudança real, que precisaria da coragem política que nos tem faltado.

Nunca tivemos tantas horas extraordinárias pagas a médicos, enfermeiros e assistentes operacionais, a trabalhadores vinculados ou à tarefa, e estamos pior do que nunca. Gastamos muitos milhões no SNS 24, que faz alarde do crescimento exponencial dos contatos telefónicos que recebe, mas é evidente que não consegue reduzir o recurso aos Serviços de Urgência (SU). Os doentes continuam a chegar às centenas, menos de 10% com observação médica prévia, e aglomeram-se numa mistura explosiva de diferente gravidade clínica. Somos ineficientes, e os cuidados de saúde fornecidos não primam pela qualidade, nem pela segurança. Em Portugal, 7 em cada 10 cidadãos recorrem ao SU uma vez no ano. A média dos países da União Europeia é cerca de metade.

Há muitos aspetos, na resposta hospitalar ao doente agudo ou crónico agudizado, que podem e devem ser discutidos e melhorados: a falta de disponibilidade de toda a equipa de saúde, porque não se promove a exclusividade do trabalho numa única instituição; as condições físicas dos SU, que não foram pensados para tão grande número de utentes; o recurso excessivo aos médicos tarefeiros, que não tendo vínculo ao hospital, têm observações episódicas dos doentes, o que lhes amputa o conhecimento da evolução da doença.

Mas há que ter a noção clara de que as urgências hospitalares não deixarão de estar sempre perto da rutura, se não for conseguida uma diminuição franca das idas à Urgência. A partir de determinado número, adaptado à tipologia do hospital, todos os SU são ingovernáveis, por melhor e mais abnegada que seja a equipa.

E, por favor, não acreditem naqueles que aproveitam as ocasiões em que o caos das urgências é mais gritante, para defenderem interesses corporativos, e dizerem que as coisas se resolveriam com a criação de uma especialidade de urgência!

A doença aguda ligeira a moderada tem de ter resposta nos Cuidados Primários de Saúde, como acontece em todos os países que conheço. Mais de 80% das doenças agudas podem ser tratadas apenas com uma observação médica competente, sem recurso a qualquer meio auxiliar de diagnóstico. Os centros de saúde têm de ter horários de atendimento pelo menos até às 22h, com capacidade de observação desses doentes, e não pode ser considerada como consulta urgente o tempo gasto com a prescrição de receitas. Depois de assegurar as condições humanas e materiais para os centros de saúde darem a resposta atempada que lhes compete, é a vez de os políticos serem imaginativos e audazes na definição das estratégias, sempre focados no objetivo de retirar os doentes agudos sem gravidade das urgências hospitalares.

À população geral terá de ser publicitado o circuito obrigatório do doente não emergente pelo centro de saúde, antes do recurso ao hospital. Deveriam ser encontradas formas de premiar quem o fizesse, ou penalizar quem insistisse, em prejuízo de todos, no recurso ao hospital sem razão. Os centros de saúde também deveriam ter incentivos ou penalizações, caso os seus utentes “verdes” ou “azuis” da “triagem de Manchester” cumprissem ou não a regra de a eles recorrerem em primeiro lugar. Dizem-me que uma das vantagens de uma maioria absoluta na Assembleia da República era a do Governo poder traçar políticas dirigidas aos objetivos, sem ter de fazer atalhos no caminho, fruto das concessões aos lóbis instalados.

Vamos lá a ver se é desta!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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