Biografia de uma onda

O frio chegou com as últimas faíscas solares e eu não tinha casaco. Bem sei que não se trata da minha biografia, mas todo o biógrafo tem a tentação de se imiscuir na história da vida que relata.

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"Encolerizou-se no meio das circunstâncias regulamentares do oceano" PAULO PIMENTA/Arquivo

Nasceu eram 20h17, punha-se o sol de dia 19 de Abril. Chegou antes do previsto com uma urgência de resplandecer ainda debaixo da luz do sol. Rechonchuda, uma das maiores do dia. Era loira. Veio com saúde, que é o mais importante. Um surfista remou e remou mas não conseguiu acompanhá-la. A necessidade de escrever a sua biografia surge porque tenho quase a certeza de que ninguém, além de mim e do surfista, a viu. Quantas ondas ninguém vê? Ninguém estava a prestar atenção. Destaca-se esta pois sobre esta quis escrever, e não sobre outra. As biografias são assim, focamos numa só existência e pousamos temporariamente as restantes. Todas as outras existem somente para que ela se lhes eleve.

Era daquelas ondas matreiras na espuma. Uma onda envelope. Derrubaria uma senhora distraída, mas não uma criança. Derrubaria, não derrubou, pois não se avistava vivalma no areal onde desembocaria. Mas estamos a adiantar-nos. Voltemos ao nascimento debaixo do sol dourado. Foi esplêndido, ainda que disforme. Conheceu o êxito. Elevou-se em estatura vigorosa sem ter de pedir permissão. Adolesceu em liberdade impertinente, desobedecendo tanto quanto o permite a condição efémera da juventude. Transgrediu as directrizes da bandeira amarela hasteada à sua frente. Foi pioneira, poderia ter instigado a troca da bandeira, ela era, sim, grandiosa em potencial, uma dessas vidas singulares capazes de desafiar as leis e de alterar o rumo das coisas. Carregava em cada uma das suas gotas o fulgor auspicioso da revolução.

O frio chegou com as últimas faíscas solares e eu não tinha casaco. Bem sei que não se trata da minha biografia, mas todo o biógrafo tem a tentação de se imiscuir na história da vida que relata, e neste caso o tremor do meu tronco e o eriçar dos meus pelos condicionou a observação e a conseguinte narração.

Esculpiu-se a si mesma, fez-se levantar pela força da vontade sem soçobrar ante a pusilanimidade da ocasião.

Encolerizou-se no meio das circunstâncias regulamentares do oceano, expeliu sons de fúria e bufares cínicos de desagrado nos entretantos da placidez melodiosa do marulhar.

Emprenhou e a gravidez alargou a sua fisionomia e fez reluzir a sua tez. Pariu torrentes que seguiram os seus desígnios após os primeiros soluços, três ondas agitadas e desastradas, que se emanciparam do leito materno e vagueiam ao comando da maré.

Eu rejubilava, o regozijo de quem testemunha os acontecimentos de frente. Um prazer distinto daquele que teria o surfista, que assistia ao mesmo, mas de trás, qual pai na hora do parto.

A meia-idade fez-se sentir no vislumbre de melancólica careca por entre penugem grisalha. O franzir de rugas esparsas na sua pele outrora aplainada segredava mais do passado do que do porvir.

Enfim, curvou-se toda em marreca triste antes de despencar em espuma desconexa e um tudo ou nada de salpicos. Ainda que lhe possamos adivinhar algum propósito metafísico pela cintilação quase estelar da sua juba, não passam de conjecturas. A única certeza que acerca dela temos é tão colossal quanto a própria.

Partiu às mesmas 20h17 que a viram nascer. A sua existência foi breve. Nasceu somente para morrer.

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