Da ONU ao Home Office: plano do Governo britânico para enviar migrantes para o Ruanda gera onda de críticas

Funcionários do Ministério do Interior do Reino Unido opuseram-se ao programa, mas Patel usou prerrogativa ministerial para forçar a sua aprovação. ACNUR diz que o plano é “contrário à letra e ao espírito” da Convenção de Genebra.

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Priti Patel, ministra do Interior do Reino Unido (à esquerda), contrariou a posição do secretariado permanente e aprovou o programa EUGENE UWIMANA/EPA

O plano anunciado na quinta-feira pelo Governo britânico para enviar para o Ruanda a maioria dos migrantes e requerentes de asilo que chegam ao Reino Unido através do Canal da Mancha está a gerar uma enorme onda de críticas, dentro e fora do país.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) reagiu quase de imediato, dizendo que a medida é “contrária à letra e ao espírito” da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, também conhecida por Convenção de Genebra.

Partido Trabalhista, Partido Nacional Escocês e Liberais-Democratas estão entre as forças políticas da oposição que contestam o plano do Governo conservador, descrevendo-o como “desumano”, “pouco ético” ou “impraticável”, aos quais se juntam actuais e antigos deputados tories, e até ex-ministros, com Rory Stewart, que foi responsável pela pasta do Desenvolvimento Internacional.

Para além disso, mais de 160 organizações de direitos humanos e de apoio aos migrantes e aos refugiados também criticam um programa que implica um investimento de 120 milhões de libras (cerca de 144 milhões de euros) e que estipula que os pedidos de asilo daqueles que entrarem em território britânico de forma irregular serão processados no país africano. Em caso de aprovação dos requerimentos, os migrantes poderão ficar a viver no Ruanda, localizado a mais de seis mil quilómetros do Reino Unido.

Dentro de portas há ainda um grupo relevante de opositores ao plano: um número significativo de funcionários públicos do Ministério do Interior (Home Office), que o terá de implementar, e, particularmente, os membros do seu secretariado permanente, que o chumbaram, apresentando fundamentos financeiros, jurídicos e éticos.

A aprovação do plano só aconteceu, na verdade, porque a ministra do Interior, Priti Patel, usou uma prerrogativa inerente ao cargo que ocupa — chamada “ministerial direction” (ou “ordem ministerial”) — que obriga o seu ministério a avançar com a proposta, independentemente das reservas ou objecções que tem.

Segundo o think tank Institute for Government, foi apenas a segunda vez, em cerca de 30 anos, que se invocou uma “ministerial direction” no Home Office.

Apesar de esta opção significar que a responsabilidade política e administrativa do plano fica colocada integralmente sobre os ombros da ministra, ao invés do secretariado permanente, o Guardian noticia este sábado que as reticências dos funcionários em implementá-lo podem levar a demissões, a pedidos de transferência de funções ou cargos e até a greves no Ministério do Interior.

“Trata-se de uma política que causa divisões”, assume Dave Penman, secretário-geral do sindicato FDA. “Nestas políticas, a escolha dos funcionários públicos é entre implementá-las ou sair. Isso pode significar sair para outro cargo no departamento, mudar de departamento ou abandonar o funcionalismo público”.

Segundo o Home Office, 28.526 pessoas completaram, em 2021, a travessia do Canal da Mancha, a maioria em embarcações de borracha. No ano anterior, o número oficial é de 8466. O Governo britânico diz que vai poupar cinco mil libras (seis mil euros) por dia a acomodar requerentes de asilo em solo britânico, ainda que essa poupança só se vá verificar a “longo prazo”.

Para o ACNUR, porém, o plano do Reino Unido é altamente problemático. Comparando-o com o acordo que a Austrália fez com a ilha de Nauru — transformada num centro de detenção de migrantes irregulares no Pacífico —, Gillian Triggs, alta comissária adjunta para a Protecção, diz que o Governo britânico está a “fugir às suas responsabilidades de asilo”.

“O ACNUR opõe-se firmemente a acordos que procurem transferir refugiados e requerentes de asilo para países terceiros, sem garantias e normas suficientes”, afirma Triggs.

“As pessoas que fogem da guerra, do conflito e da perseguição merecem compaixão e empatia”, acrescenta a dirigente do ACNUR. “Não devem ser transaccionadas, como se fossem mercadorias, e transferidas para o estrangeiro para serem processadas”.

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