Somos o que comemos? No Mercado de Arroios vai falar-se de comida e de identidade

A Associação Pão a Pão, responsável pelo restaurante Mezze, quer cruzar diferentes culturas à mesa para falar do “papel da comida na construção de identidade”, seja ela nacional, regional ou local. O encontro será na terça-feira, dia 19, e conta com o britânico Ronald Ranta, especialista no tema.

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O Associação Pão a Pão abriu o Mezze em 2017, no Mercado de Arroios NUNO FERREIRA SANTOS

Muitas vezes é a comida que faz a ocasião. Diz-se ainda que somos o que comemos. Mas o que a Associação Pão a Pão propõe como tema para o encontro a realizar-se em Lisboa, no próximo dia 19 - e que juntará palavras, paladares diversos e uma aula de ilustração -, alarga o conceito da comida a uma outra dimensão: a um símbolo de “afirmação e de distinção da identidade de um povo em relação a outro”.

No fundo, a ideia é trazer para cima da mesa “o papel que a comida desempenha nas nossas vidas, ao qual nem sempre prestamos muita atenção”, afirma ao PÚBLICO Francisca Gorjão Henriques, a presidente da Pão a Pão, uma Organização Não Governamental para o Desenvolvimento​ (ONGD) criada em 2016. Não surpreende que o cenário do encontro seja o Mercado de Arroios, uma vez que é um lugar com quem sempre quiseram “manter uma relação” desde que lá abriram o restaurante Mezze, em 2017. Pioneiro em dar trabalho a refugiados e migrantes, este restaurante de cozinha do Médio Oriente emprega cerca de 15 refugiados e já abriu “uma vaga ou duas” para acolher ucranianos. Apesar de ser uma cozinha de outras geografias, o verdadeiro objectivo do Mezze, diz a presidente, é apoiar pessoas que estejam em situação vulnerável.

A possibilidade de se fazer um debate sobre a relação entre a comida e a construção de identidade já vinha a ser mastigada há muito tempo. Contudo, a pandemia acabou por fazer com que ficasse guardada na gaveta por tempos indeterminados por não considerarem que fosse “um assunto para se discutir em debates online”, refere Francisca. A oportunidade surgiu finalmente quando souberam que Ronald Ranta, professor da Kingston University de Londres e que já tinham na mira por ser autor de vários livros e papers sobre a comida enquanto “forma de poder e de resistência”, vinha a Portugal em Abril.

A comida, além de ser uma “excelente forma de unir as pessoas” - que é justamente o mote do Mezze, cujo nome significa “refeição de partilha” -, “tem também um papel político relevante”, ressalva Francisca Gorjão Henriques. Um só produto pode vir a comprometer tradições, continua, e toma a quinoa como exemplo: o facto de ter ficado na moda nos países ocidentais fez com que os seus preços disparassem e com que no Peru, de onde este alimento é oriundo, as pessoas se vissem confrontadas com dificuldades para o adquirir.

Para aproveitar esta “feliz coincidência” da vinda de Ranta, a Pão a Pão chamou ainda para a conversa a jornalista do PÚBLICO Alexandra Prado Coelho, que há muitos anos acompanha a gastronomia e alimentação, e um “taberneiro com olhar de antropólogo”, como é apresentado, no programa da iniciativa, André Magalhães (Taberna das Flores); ambos já estão envolvidos no projecto há algum tempo. No debate, que acontecerá às 18h, Prado Coelho abordará a relação entre a alta cozinha e a diversidade cultural. Já Magalhães fará uma viagem pela história gastronómica de Portugal, incluindo questões por vezes ignoradas: “porque sabemos tão pouco sobre a cozinha dos territórios que Portugal colonizou?”, “como a colonização alterou essa cozinha?”.

"A comida, tal como o desenho, aproxima e reúne pessoas"

Para acompanhar a troca de ideias haverá ainda bancas onde se poderão experimentar sabores que vão da Ucrânia à Líbia, passando pela Palestina e a Eritreia, chegando à Serra Leoa. Uma das bancas ficará a cargo dos alunos da Mezze Escola, um curso de restauração desenhado pela Pão a Pão para pessoas refugiadas e imigrantes, em conjunto com a Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa e com o apoio do Programa Cidadãos Ativ@s da Gulbenkian. “Desafiámos os alunos”, que contemplam oito nacionalidades diferentes, “a pensarem em pratos que achassem que reflectisse a sua identidade”, sublinha Francisca.

No mercado estará também presente uma pasteleira ucraniana, Olena Yemelianovska, que chegou há pouco tempo da Ucrânia e que terá agora a oportunidade de avaliar “a popularidade da sua cozinha” num país onde se vê agora obrigada a reconstruir a sua vida.

Tudo isto será registado de uma forma menos convencional, designadamente através da ilustração, numa aula dada por João Catarino. O desenho surge aqui como forma de observar o outro com olhos de ver e de criar assim uma relação, afirma Francisca. E justifica: “o desenho é uma forma mais lenta e atenta de aproximação ao outro, que implica um tempo diferente, é muito menos instantâneo que a fotografia”. Numa resposta enviada por email ao PÚBLICO, João Catarino realça esta mesma ideia, afirmando que “a comida, tal como o desenho, aproxima e reúne pessoas”, ambos “têm a capacidade de proporcionar um tempo de fruição, degustação, partilha e prazer”. E ambos “incorporam interpretações técnicas, contrastes, expressões, ingredientes e saberes, constroem também identidades, que se se vão transmitindo pela curiosidade e pela descoberta”, acrescenta. Neste sentido, a aula será dada sob diferentes ângulos, “perante o espaço, a comida e as pessoas”.

Esta iniciativa ganha especial relevância quando se considera as mudanças que se fazem sentir na sociedade de hoje. “Estamos mais atentos ao que comemos e à forma como os produtos são produzidos”, bem como a “valorizar formas culinárias mais sustentáveis”, nota a presidente da Pão a Pão. Além disso, refere, ao mesmo tempo que estamos a “invocar as tradições”, como o pão artesanal, feito com fermentação lenta, estamos também mais receptivos às cozinhas de outras origens. Basta ver o número crescente de restaurantes internacionais, sobretudo nas grandes cidades, assinala. E o encontro sobre comida e identidade vai justamente ao encontro desta diversidade, cruzando o mundo à mesa.

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