A urgência da autonomia estratégica em tempo de crise. “Tivemos todas as oportunidades para impedir isso”

Pandemia, guerras, uma panóplia de ameaças à nossa volta e também no mundo digital têm levantado a reflexão sobre como a União Europeia pode reforçar a sua autonomia estratégica numa economia globalizada.

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Reuters/FABIAN BIMMER

Há muito tempo que o termo “autonomia estratégica” tem espaço entre os assuntos na agenda europeia, mas entre uma pandemia que mudou o mundo, um palco instável na energia e nas cadeias de valor em geral, ameaças cada vez mais presentes a nível da cibersegurança e o regresso da guerra ao território europeu, a autonomia estratégica saltou para o topo das prioridades.

Apesar de ser um termo germinado em debates sobre defesa e segurança, a autonomia estratégica não se limita a estas áreas. “É a capacidade que um determinado território tem de poder garantir o auto-abastecimento do que é essencial para o funcionamento da sociedade”, resume o eurodeputado socialista Carlos Zorrinho, que integra a comissão de Energia do Parlamento Europeu.

Esta é também uma preocupação clara dos cidadãos que participam na Conferência sobre o Futuro da Europa (CoFoE). No caderno de encargos dos painéis de cidadãos, no capítulo referente aos temas da UE no mundo, a “redução de dependências de fora da Europa”, incluindo de gás e petróleo, e a preocupação com padrões ecológicos e até mesmo de direitos humanos nas escolhas feitas para refazer o puzzle de abastecimento em diversas áreas são mensagens claras nas recomendações entregues à Plenária da CoFoE.

O caso da energia, que se tornou central nos últimos meses entre a crise inflacionária e as sanções à Rússia, é um dos exemplos. Zorrinho começa por distinguir que esta é uma situação de “economia de guerra”, em que decisões contingentes são tomadas para garantir o bem-estar dos cidadãos e das economias, como “o acesso à energia para se aquecerem e para a sua vida quotidiana e também para produção de bens essenciais.” Sobre o exemplo da reactivação de centrais a carvão ou outras fontes de energia poluentes nos Estados-membros, o socialista diz que é preciso enquadrar estas decisões dos Estados como um “recurso” para que a economia se possa manter “enquanto houver guerra”. “O recuo é operacional”, sublinha: “A estratégia clara é continuar a descarbonização até 2050”.

Carlos Zorrinho afirma que é preciso encontrar um “mix energético” que permita fazer frente a crises como esta. “As energias renováveis são boas para um mundo sem guerra, mas pouco flexíveis a nível de resposta à incerteza.” Em Portugal, por exemplo, a oferta de renováveis é “significativa, mas não é elástica”, nota o eurodeputado, recordando que fontes de energia eólica ou solar não são armazenáveis. Carlos Zorrinho tem vindo a defender alternativas como o hidrogénio verde e as baterias. Acima de tudo, remata, é preciso evitar “uma só torneira de abastecimento”.

Marisa Matias, eurodeputada eleita pelo Bloco de Esquerda, concorda que na questão da autonomia estratégica em áreas como a energia é imperativo falar de “caminhos para a transição verde”, como a autonomia gradual em relação a combustíveis fósseis e a “fontes de fornecimento externo”. Mas esta autonomia não deve ser apenas reforçada em função do “tipo de regime”, nota a eurodeputada (que também integra a comissão de Energia do Parlamento Europeu), alertando para o facto de o acordo do fornecimento de energia assinado com os EUA, ainda que represente uma alternativa à Rússia, poder representar um “recuo gigantesco em termos de metas climáticas”.

Paulo Rangel também levanta reservas sobre “dependências exclusivas ou excessivas” e recorda que “a Europa nunca quis fazer a diversificação de fontes”. Um corte gradual com a dependência da Rússia (adiantado agora, de forma abrupta, através de sanções) seria previsível, considera, tendo em conta as metas do Pacto Ecológico Europeu e a transição energética em marcha. “Porque é que só agora demos conta destes erros todos? Tivemos todas as oportunidades para impedir isso”, refere, recordando as infra-estruturas europeias subaproveitadas em matéria de energia. “Não fizemos o trabalho de casa.”

Soberania

Para Paulo Rangel, é preciso também olhar com atenção para questões como a soberania alimentar. “Uma União não pode deixar de ter uma estratégia para a produção e também para o aprovisionamento”, diz, sublinhando a importância de procurar “soluções mais eficientes do ponto de vista dos mercados” que resistam a um “evento que ponha em crise essas dependências”.

E não está em causa apenas a actual guerra na Ucrânia. Já durante a pandemia, continua o eurodeputado eleito pelo PSD, se tornaram claras as fragilidades da UE no que toca à “produção de certos bens que eram essenciais na cadeia de produção”, que estavam “externalizados”. Isto verificou-se, com diferentes níveis de impacto, em áreas como o sector agro-alimentar, a energia, a saúde e produtos farmacêuticos, ou mesmo no fornecimento de microchips e semicondutores, componentes decisivos para a produção de aparelhos electrónicos. Em várias destas áreas, a Comissão Europeia já pôs entretanto em marcha estratégias para evitar rupturas.

“Não há nenhuma cadeia de valor que seja verdadeiramente autónoma”, nota Carlos Zorrinho. Com o processo de globalização, aumentou também a especialização de diferentes países e regiões. “O que a pandemia veio mostrar é que quando a livre circulação foi posta em causa, o elo mais fraco da cadeia bloqueou a cadeia toda”, recorda o eurodeputado do PS.

As relações comerciais com outros países ou blocos podem ser — e em algumas áreas têm sido uma forma de fazer esta diversificação. Paulo Rangel dá o exemplo de países e regiões como Índia, Indochina, Japão, África e a América Latina, com as quais a Europa tem uma oportunidade de estabelecer relações, reforçar a sua posição e “ter uma identidade própria” e enquanto bloco. “Isto deve ser aproveitado e incentivado”. “Sabemos de antemão que nenhum país será capaz de produzir tudo aquilo que precisa”, assume também Marisa Matias, mas alerta que estas devem ser “relações de interdependência a vários níveis”, “relações verdadeiras de cooperação, e não lógicas de exploração, de dominação”.

Defesa

Se em matérias como a soberania alimentar, a dependência energética ou o abastecimento de outros bens parece existir um acordo, em matéria de defesa e segurança as reacções são diferentes. Marisa Matias é peremptória: “Não creio que, entre todas as áreas que precisamos de trabalhar, a defesa e a militarização sejam prioritárias.” Querer focar na defesa, considera, é “uma forma de não responder àquelas que são áreas de trabalho que temos que fazer para a autonomia estratégica da União Europeia face a outros blocos.”

“No caso da defesa não há capacidade estratégica”, nota Paulo Rangel. O social-democrata considera que “o problema da defesa europeia não é de investimento”, mas sim o facto de que “não há capacidade de tirar sinergias destes investimentos”. Mesmo tendo em conta a pertença de países da UE à NATO, que poderia indiciar avanços nesta matéria, “há um trabalho de harmonização, de uniformização a fazer para este investimento [em defesa] ser rentável”. Recordando que “Portugal é uma ilha rodeada de mar e de Europa por todos os lados”, Rangel reforça ainda a “vocação atlântica” do país, diferente do carácter mais continental dos grandes países do bloco europeu.

Marisa Matias assume a necessidade de reforçar a cooperação dos Estados-membros, permitindo mais respostas articuladas, mas reforça: “Opomo-nos à militarização.”

Sobre o finalmente concluído documento da Bússola Estratégica europeia, “fazendo parecer que traz mais autonomia”, através da defesa e do militarismo, “creio que não o faz”. “É muito perigoso estarmos a avançar com propostas em áreas que não estão previstas nos tratados”, sublinha ainda a eurodeputada. Encarar a “defesa como um dos objectivos da UE, que não é”, vai em contramão com “o que é suposto ser fundador” da União, nomeadamente os objectivos estratégicos que remetem mais para a UE como uma “força de equilíbrio”.

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