Yitui weijin – retroceder para avançar

A China atenuou o seu ímpeto antiocidental e tem reduzido a sua cooperação com a Rússia, mas todo este posicionamento é apenas aparente. O mundo vai girando, e a China, na retaguarda, rodopia sobre si mesma na ânsia de encontrar o melhor caminho.

A China e a Rússia são duas civilizações que brotaram nos seus respetivos espaços territoriais sem revelarem cumplicidades entre si. A primeira é marcadamente asiática, a segunda, europeia. Escreve Klaus Mehnert que não há em toda a filosofia russa a mínima presença do elemento “asiático”, na mesma proporção que não aparece na filosofia alemã. Quando as duas civilizações quiseram resolver a linha fronteiriça que as dividia, foi mais fácil falar com os russos através de um padre português de Vila Nova de Famalicão, Tomás Pereira, versado em latim, do que por intermédio de um mandarim chinês de linhagem imperial. Assim se esboçou o Tratado de Nerchinsk, em 27 de agosto de 1689, que ainda hoje marca a risca divisória entre as duas nações. Fica claro que a ideia de um euroasiatismo é mítica, obedece hoje a um clã de profetas do lucro, pouco expressiva do ponto de vista político.

Deste modo, ao longo dos séculos, os dois povos viveram sem afetos, que só a propagação do comunismo no século XX tentaria remediar. Os russos plantaram a nova ideologia política na China, apoiaram o novo parceiro com assistência técnica e financeira. Mas Mao, para desgosto dos soviéticos, nunca dá ao marxismo-leninismo o seu sentido original, converte-o ao seu movimento rural. Não tardou que as duas nações se virassem uma contra a outra, prestes a entrar numa guerra fratricida. Há na genética civilizacional chinesa uma aversão ao que vem de fora, que só com aditivos identitários e interesses revelados poderá germinar no seu império. Das parcerias com os soviéticos, como já o tinha feito com os nacionalistas internos, soube sempre subtrair ganhos. Enfraquece o inimigo, retira-lhe conhecimento. Foi desta forma que se tornou uma potência nuclear.

Das companhias estratégicas que tem estabelecido ao longo dos anos, do plano interno à economia global, funciona quase sempre na mesma toada, coopera com o sentido da extração. É com este propósito que avança o projeto da Nova Rota da Seda, que, muito para além da dimensão dos negócios, tem uma forte orientação política e estratégica. A potência subtil visa captar sem transformar, vencer sem lutar. Esta é a grande diferença entre Moscovo e Pequim: enquanto os russos gostam de fazer demonstrações de força, a China faz demonstrações de sabedoria.

As empresas internacionais que estabeleceram joint-ventures com empresas chinesas viram-se sujeitas a esta estratégia, transferindo conhecimento para as parceiras asiáticas, muitas vezes coagidas. Em breve as multinacionais asiáticas se tornaram autónomas. O mundo nunca percebeu a China, mas a China percebeu o mundo. Foi pela via das joint-ventures que o gigante asiático adquiriu práticas de gestão modernas, desenvolveu uma poderosa rede de espionagem, capturou segredos industriais. Assim aconteceu, por exemplo, em França, como os casos de Henri M. e Pierre-Marie H., pertencentes à Direção-Geral de Segurança Externa francesa e acusados de passarem informações ao Guoanbu, o Ministério de Segurança Chinês, a troco de avultadas quantias de dinheiro.

Apesar de serem potências geneticamente diferenciadas, Vladimir Putin e Xi Jinping trouxeram para as relações sino-russas o melhor clima de entendimento dos últimos 50 anos. Mal Xi Jinping subiu ao topo da hierarquia do poder na China, foi a Moscovo dar um abraço ao vizinho. Um sinal inequívoco sobre onde Pequim quis direcionar a sua estratégia primordial de política externa. Na mente dos dois governantes estavam os mapas mentais de uma geografia periférica arrepanhada, duas potências inchadas de orgulho ferido que têm os olhos afiados contra o satã americano. As diferenças são maiores que as semelhanças, mas a avidez de recursos, a cooperação militar e a fuga a uma ordem internacional atiram-na para o colo uma da outra.

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Vladimir Putin e Xi Jinping no encontro de 4 de Fevereiro em Pequim Sputnik/Aleksey Druzhinin/Kremlin

Em 4 de fevereiro, na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, os dois líderes prometerem cooperar sem limites, um compromisso que quase chegava ao formalismo de uma aliança. O momento era crítico. Xi Jinping estava amuado com Washington, via a chama dos seus Jogos Olímpicos de Inverno ofuscar-se com o boicote diplomático americano; a iniciativa AUKUS oferece resistência às suas aspirações marítimas regionais; o protecionismo, as sanções aos dirigentes chineses por causa da repressão em Xinjiang e as insinuações por causa da pandemia covid-19. Ressentida com o passado, a China procura em Moscovo o consolo para resistir a um mundo de vozes livres e democracias liberais. Moscovo adotou os novos sistemas de vigilância e censura utilizados pelo seu vizinho asiático, lutam em conjunto contra o expansionismo da NATO, e manifestam uma antipatia por uma ordem mundial liderada pelos EUA. As duas nações estão feridas no orgulho, pretendem reparar as injustiças da história e colocar as respetivas nações no caminho da glória. Em 2049, a República Popular celebra o seu centenário, altura para estar na frente da gestão das questões internacionais, com Taiwan integrado na “mãe pátria”. Querem um outro mundo para o mundo. Mas esta é apenas uma aproximação de necessidade, um “casamento de conveniência”, como lhe chama o académico Bob Lo.

Não haja ilusões, a parceria estratégia sino-russa é aparente, está assente em premissas rápidas orientadas pela necessidade. Uma parte substancial deste novo impulso de cooperação dá-se após a anexação da Crimeia, quando a China vê na aplicação das sanções internacionais um conjunto de novas oportunidades politicas e económicas. A Rússia teme o gigante asiático, a espionagem e o poder chinês em muitos países da sua esfera de influência tradicional. Após as sanções, Moscovo viu-se obrigada a ceder aos chineses parte da sua tecnologia de ponta, incluindo os caças Sukhoi Su 35, o sistema de mísseis antiaéreos S-400, “tecnologia silenciosa”, ou até o desenvolvimento de mísseis hipersónicos, que os chineses adaptam aos seus modelos nacionais. Pior, vendem a países como o Paquistão, antigos clientes dos russos.

Nos últimos 20 anos, foram identificados na Rússia mais de 500 casos de espionagem chinesa. Esta ligação bilateral é uma recauchutagem pela via dos interesses, que uma qualquer derrapagem política mostrará as suas debilidades. Na fronteira entre os dois países, que ronda os 4600 quilómetros, as interações entre as populações existem, mas não são muito dinâmicas, falta a azáfama dos bazares, repletos de produtos, o caos do trânsito, as movimentações humanas, os laços comunitários, os dialetos misturados e até o comércio ilegal. O poder público segue estratégias diferenciadas: a Rússia permanece centralizada, a China descentralizou as políticas públicas. Há ali uma certa apatia, as infraestruturas teimam em não aparecer. São conhecidas as histórias das “pontes fantasmas”, como contam os antropólogos Caroline Humphrey e Franck Billé no livro On the Edge, sobre esta região. A deslocação do pivô de Putin para a Ásia é, por todas estas razões, mais um exercício de imaginação do que um facto.

A China está numa fase de retração tática, que podemos traduzir por yitui weijin, “avançar através do recuo”, de acordo com os ensinamentos da estratégica tradicional, de forma a conseguir ficar numa posição privilegiada num futuro próximo. Percebe-se que não tem vontade de trazer soluções para o mundo, tem vontade de trazer os seus interesses para o mundo. A retórica de paz é meramente panfletária, falta-lhe a componente prática. Só atua se a sua matriz de interesses for afetada.

Na essência, a China não coopera, a China supera. O lema do “Sonho da China” segue este propósito, de afirmação civilizacional, que pretende cumprir o seu propósito sem adversidades. O avançar da guerra na Ucrânia tem deixado a Rússia ferida e a China assustada. Este é o ponto crucial, e assim não tivesse acontecido o mundo estaria agora numa fase muito mais crítica. O relativo enfraquecimento do eixo Moscovo-Pequim é o maior ganho do Ocidente, e particularmente dos Estados Unidos, das últimas décadas. Pequim está ciente deste quadro, retrai-se, mas será para avançar. Atenuou o seu ímpeto antiocidental e tem reduzido a sua cooperação com a Rússia, para evitar ondas nefastas na opinião pública internacional, mas todo este posicionamento é apenas aparente.

Em boa verdade, Pequim tem todo o interesse em garantir que a Rússia de Putin não se desmorone, pois daria ao Ocidente um encorajamento para pressionar mais a China. A retirada permite-lhe ficar numa posição mais cómoda, manter-se politicamente ligada a Moscovo, e avançar no seu espaço político primordial, a periferia geográfica e o mundo emergente. É aqui que encontra a base de suporte para a sua ação política internacional, são espaços vazios de poder onde os Estados Unidos têm mais dificuldade em se afirmarem. Muitos destes países, integrantes do projeto da Nova Rota da Seda, abstiveram-se na condenação à invasão da Rússia e alinham com facilidade nas vontades de Pequim. São atores que estarão ao lado dos chineses na hora de uma intervenção militar “com características chinesas”, talvez Taiwan. Está a terminar, de forma abusiva, a transformação dos recifes de Mischief, Subi e Fiery Cross em bases para operações chinesas, previsivelmente militares. Está a iniciar um projeto para a construção de uma base naval nas Ilhas Salomão, país que desde 2019 deixou de reconhecer diplomaticamente Taiwan.

Enquanto o mundo focaliza as suas atenções no espaço russo-ucraniano, o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yi, faz um périplo por vários países do “sul global” reforçando as relações externas na área. Visitou o Nepal e, com um saco cheio de novos projetos de investimentos, procurou minimizar e, se possível, afastar as iniciativas americanas no país, junto à sua fronteira com o Tibete. Uma visita ao Paquistão permitiu-lhe participar na Organização de Cooperação Islâmica (OCI), dialogar de perto com o “mundo muçulmano”, para pouco depois ir ao Afeganistão falar com os recém-chegados talibãs. Faltará pouco para reconhecer o novo regime do país, mais um espaço deixado vago por Washington. Passou ainda pela Índia, um país com que mantém tensões fronteiriças e desconfianças mútuas por competições regionais, mas igualmente importante no alinhamento da agenda internacional. O mundo vai girando, e a China, na retaguarda, rodopia sobre si mesma na ânsia de encontrar o melhor caminho.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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