Sou só eu que ainda dou importância à bolinha vermelha no canto do ecrã?!

Defendo que se mostre o que se passou! Que se mostre duas, três vezes ao mundo, que se debata, que se fale disso, mas que se tenha cuidado com o que se mostra, como se mostra, à hora que se mostra e onde se mostra.

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Ajeet Mestry/Unsplash

La Piovra, a famosíssima série policial italiana produzida pela RAI foi exibida em Portugal, como O Polvo, na década de oitenta do século passado. Não consigo precisar o ano exato da estreia, mas tendo em conta que estreou em Itália no ano de 1984, só depois disso começou a ser exibida na RTP1 (na altura, só havia RTP1 e 2). Mas não é assim tão relevante precisar a data do início da transmissão em solo nacional, basta-me, pela coerência desta prosa, referir que eu teria pouco mais de nove anos quando O Polvo conquistou os portugueses com um enredo emocionante em torno do Corrado Cattani (Michele Placido), um teso inspetor de polícia obcecado em decepar os tentáculos da Máfia.

Os meus pais eram fãs da série. Tenho ideia de que passava depois das 22h30, aquela hora que marcava a diferença entre os adultos e os meninos no que à televisão dizia respeito. Antes das 22h30, tudo era menos violento, menos agressivo, menos ofensivo, menos doente, menos mortífero, menos abjeto, menos sexual. Eu deitava-me cedo, pelo que só descobri a série numa noite de insónia em que me levantei e me fui aninhar no sofá da sala com os meus pais. “Então, mas o miúdo não pode ver isto…”, comentou o meu pai com a minha mãe, que me ajeitou de forma que eu ficasse de costas para a televisão. Ouvi uns balázios e, entretanto, adormeci.

Naquela altura, era unanimemente assumida e respeitada a prática de uma proteção aos menores de “conteúdos sensíveis”, como são designados agora um chorrilho de conteúdos abjetos (a repetição da palavra é propositada; vai encontrá-la mais vezes) que não interessam nem ao menino Jesus e que passam a toda a hora em diversos canais de televisão portugueses e respetivas redes sociais, espalhando-se como ervas daninhas nas redes sociais de toda a gente, disponíveis para ver, rever e partilhar e assombrar as cabecinhas ainda pouco esclarecidas e “incompletas” de crianças e adolescentes, na larguíssima maioria dos casos sem acompanhamento adequado no que ao enquadramento e análise dos conteúdos diz respeito.

Não me entendam mal. Isto não é um jornalista a “dizer mal” do trabalho de camaradas. Trata-se de uma interpretação com propósito construtivo. Criou-se o hábito da ofensa com base no “dizer mal”, como se criticar com argumentação fosse uma espécie de queixinha ou vingança ou inveja. “Dizer mal” é gratuito. Não é disso que se trata. Gratuito é interpretar o Regime de Exceção para os serviços noticiosos — o artigo 27.º, n.º 8, da Lei da Televisão “reconhece um regime especial para os serviços noticiosos, habilitando que nos conteúdos de informação, independentemente do horário em que são difundidos, possam ser transmitidos conteúdos suscetíveis de influírem de modo negativo na formação da personalidade de jovens e adolescentes, desde que os mesmos se revistam de importância jornalística, sejam apresentados com respeito pelas normas éticas da profissão e antecedidos sobre uma advertência sobre a sua natureza” — para exibir a toda a hora, várias vezes por hora, o dia todo, dias a fio, as mesmas imagens de pessoas mortas ou feridas nas ruas, em carros, escaramuças e tiroteios. A prática não é de agora e não é exclusiva dos serviços noticiosos.

Sem me alongar, peço uma reflexão sobre os conteúdos dos programas da manhã e da tarde, onde adultério, abusos sexuais, crimes passionais, violência doméstica, violações e abusos de menores (podia continuar a enunciar) são descritos em pormenores, muitas vezes com a presença de agressores e vítimas, numa clara exploração do sangue, choque e horror? Estarei eu armado em púdico ou este tipo de coisas apresentadas da forma que habitualmente são nesses programas não tem interesse noticioso ou público algum?

Quando começou a haver falta de cuidado na transmissão de conteúdos sensíveis, ouviam-se amiúde críticas (umas construtivas, outras só para “dizer mal”) sobre o abuso de determinado canal de televisão ou jornal (quase sempre o mesmo, sejamos honestos), mas depressa a condenação foi convenientemente esquecida e trocada pelo pressuposto de que sangue, choque e horror sobem as audiências. Depressa deitadas às malvas foram as preocupações – com a esfarrapada justificação de que “se os outros dão, a gente também dá!” – com o facto de determinados conteúdos serem “suscetíveis de influírem de modo negativo na formação da personalidade de jovens e adolescentes”. Liberdade de informação, sempre! Abuso de liberdade, nunca!

Se antes a violência explícita ou os crimes sexuais nos media era exposta em programas denominados sensacionalistas, hoje assistimos à expansão do conceito sem hora ou lugar marcado. Vídeos e imagens são escancaradas sem o mínimo decoro ou bom senso, acompanhados de tarjas em rodapé com títulos chocantes sobre o conteúdo: “padrasto viola enteada durante 15 anos”, “mulher desfigura ex-namorado com ácido sulfúrico”, “PSP pontapeado dezenas de vezes”, “Cadáveres amarrados na rua e com tiro na nuca”, “Valas comuns com centenas de corpos”, “centenas de civis amarrados e mortos”, “Há crianças nas valas”. Ah e tal, advertimos as pessoas mais sensíveis sobre as imagens que íamos passar a seguir.

Não chega. Tenho consciência de que um miúdo de nove anos é muito menos ingénuo do que eu era nessa idade ou não houvesse quase quarenta anos a separar-nos e um mundo de informação e desinformação na caixa que mudou o mundo ou num objeto retangular do tamanho da palma da mão de um adulto. Verdade, o mundo mudou, mas temos por isso que o expor sem rede a todo o tipo de conteúdos abjetos? Creio que não. Um miúdo de nove anos não sabe lidar com isso. Os de 12 e de 15 também não. A maioria dos de 18 é +provável que não. E por aí adiante. Eu, com 47 anos, nem sempre sei lidar com o que vejo na televisão ou nas redes sociais, mesmo tentando encaixar noutras coisas que fui vendo ao longo de mais quase cinco décadas. Imaginem o miúdo de nove anos.

A gota de água na minha revolta e que motiva este texto foram as imagens dos acontecimentos em Bucha, na Ucrânia. Não parecem existir grandes dúvidas de que se trata de crimes de guerra. E ainda bem que há quem tenha fotografado e filmado. O meu agradecimento a quem o fez pela coragem e estômago. Ora, defendo que se mostre o que se passou! Que se mostre duas, três vezes ao mundo, que se debata, que se fale disso, mas que se tenha cuidado com o que se mostra, como se mostra, à hora que se mostra e onde se mostra. Sobretudo, mostre-se a quem poderá julgar e punir os responsáveis.

Não é preciso, digo eu, mostrar-nos as imagens das vítimas da Guerra na Ucrânia espalhadas pelas estradas, as vítimas dos incêndios de Pedrógão dentro dos automóveis na “estrada da morte”, como de forma sensacionalista alguém resolveu chamar à estrada onde as pessoas ficaram carbonizadas dentro das suas viaturas, ou das covas comuns das vítimas da COVID-19 no Brasil, seguramente algumas das coisas mais horrível que já vi, a toda a hora, a bem das nossas crianças e da sanidade mental dos adultos. Este massacre televisivo transforma-nos, disso não duvidem. Está comprovado que o tempo de exposição de uma pessoa à violência nos meios de comunicação social — George Gerbner, um conceituado professor de comunicação realizou diversos estudos sobre o assunto e criou o conceito do “Síndrome mundial da malvadez” — pode influenciar a nossa perceção da realidade, cultivando a imagem de um mundo relativamente perigoso e malvado. Eu não quero ver o mundo assim. E não quero que as nossas crianças vejam o mundo assim.

Paralelamente, o psicólogo Rowell Huesmann, professor do departamento de psicologia da Universidade de Michigan (EUA), explicou, já no longínquo ano de 2007 (dois anos depois do surgimento do Twitter, três depois do Facebook), que a exposição exacerbada à violência nos media pode desencadear um fenómeno que o próprio apelidou de “Teoria da Dessensibilização”. De acordo com a sua teoria, o corpo tem uma resposta fisiológica negativa natural quando se depara com cenas violentas, disparando os batimentos cardíacos e provocando sudorese e desconforto. A exposição contínua à violência faz com que nos acostumemos à violência que vemos todos os dias. Ato contínuo, perdemos a resposta fisiológica diante dos fatos, tornando-nos indiferentes aos acontecimentos. Com isso, referia o autor, planear e executar um ato violento também se torna mais simples. Eu não gostava de ficar assim. E muito menos que as nossas crianças ficassem.

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