A invasão da Ucrânia, a pandemia, a crise de 2008 e o futuro da União Europeia

É viável concretizar modalidades gradualistas e negociadas de federalização que garantam, em simultâneo, a afirmação dos interesses legítimos dos Estados maiores e/ou mais desenvolvidos a par dos dos mais pequenos e/ou menos desenvolvidos e ampliar a capacidade de intervenção do conjunto.

Considero que, tanto ou mais do que a crise de 2008, a injustificável e inaceitável brutalidade que os regimes ditatoriais da Federação Russa e da Bielorrússia estão hoje a impor à Ucrânia devem levar os cidadãos dos países europeus quer a interpretar melhor os respectivos passados nacionais quer a encarar com maior empenhamento e com um acrescido esforço de objectivação os cenários de possível evolução futura da União Europeia. A urgência de um tal debate é, ainda, reforçada pelo peso crescente, à escala mundial, tanto de outros regimes ditatoriais — autoritários e/ou totalitários — como de Governos populistas com vectores de autoritarismo ou de forças políticas radicais (de extrema direita ou de extrema esquerda).

Penso, complementarmente, que a análise dos percursos da Organização Europeia de Cooperação Económica e da Comunidade Económica Europeia/União Europeia permite concluir que é possível estruturar e consolidar processos de integração subcontinental de cariz democrático e multilateralista, promotores de desenvolvimento integrado e sustentável. Ou seja, que é viável concretizar modalidades gradualistas e negociadas de federalização que garantam, em simultâneo, a afirmação dos interesses legítimos dos Estados maiores e/ou mais desenvolvidos, a promoção dos interesses legítimos dos Estados mais pequenos e/ou menos desenvolvidos, o ampliar da influência e da capacidade de intervenção do conjunto dos Estados envolvidos.

Defendo, igualmente, que o papel significativo desempenhado pela União Europeia na afirmação do predomínio das concepções económico-sociais monetaristas e de uma globalização neoliberal, de uma lógica unilateralista e por vezes arbitrária de condução do sistema de relações internacionais, de uma postura de tolerância face a regimes ditatoriais ou a iniciativas institucionais ilegítimas, não demonstra a natureza intrinsecamente não democrática e neoliberal daquele processo de integração subcontinental. Revela, sim, que, à semelhança dos Estados nacionais, também as modalidades de federalização são compatíveis com a implementação de diferentes programas político-ideológicos.

A muito insuficiente capacidade da União Europeia para, no presente, face à estratégia expansionista e militarista da ditadura russa, proteger o povo e a democracia ucranianos decorre de escolhas feitas, pelo menos desde o fim da Guerra Fria, pelas elites políticas — e pelas populações em geral — dos respectivos Estados-membros. Saliento, a este propósito, como a opção da União Europeia por níveis baixos de federalização nos âmbitos das políticas de segurança e de defesa, das políticas económicas e sociais, das políticas educativas e culturais contribuiu para um escasso envolvimento no apoio à transição para regimes democráticos e para economias capitalistas desenvolvidas de muitos dos Estados nascidos após a dissolução da URSS, para uma atitude de apaziguamento face a ditaduras e de aprofundamento da dependência energética relativamente à Federação Russa, para uma postura timorata quanto ao reforço da sua própria capacidade militar e quanto à aceitação de mais Estados membros.

Identicamente, a lentidão e a precariedade da resposta da União Europeia à crise de 2008 não terá resultado, apenas, da anterior defesa entusiástica dos pressupostos da teoria económica monetarista e da globalização neoliberal em substituição das fundadoras teoria económica keynesiana e globalização negociada. Deveu-se, também, às implicações do diminuto grau de integração das políticas económico-sociais (em si mesmas e por contraste com o elevado nível de federalização da política monetária): rivalidade e conflitualidade entre Estados-membros, desperdício de oportunidades de generalização de boas práticas, menor capacidade de influenciar a evolução da regionalidade económica e social à escala global.

Por sua vez, a mais federalizada reacção da União Europeia à pandemia de 2020 e à invasão da Ucrânia, bem como a recuperação de soluções de matriz keynesiana, garantiu aos países membros maior protecção e acrescida capacidade de intervenção em convergência com ou perante outras potências globais (efectivas ou potenciais), nomeadamente os EUA, o Japão e o Brasil, a Federação Russa, a China e a Índia. Tornou-se, talvez, menos oculto o pendor destrutivo, no médio e longo prazos, do nacionalismo identitarista e xenófobo (por exemplo, do “Brexit" britânico), do populismo com vectores de autoritarismo (por exemplo, das derivas antidemocráticas na Hungria e na Polónia), das pseudoevidências do darwinismo social e do racismo (por exemplo, da suposta incompatibilidade entre Europa Central e do Norte versus Europa do Sul), do dumping fiscal e ambiental, do desprezo face a refugiados e a imigrantes oriundos da Ásia e de África.

Observando comparativamente, por um lado, as sequelas das opções feitas no pós-Primeira Guerra Mundial, no pós-Guerra Fria e no pós-crise de 2008; por outro, os resultados de parte das escolhas realizadas depois do início da Segunda Guerra Mundial, depois do início da Pandemia de 2020 e depois do início da invasão da Ucrânia, será, pois, objectivante concluir que é do interesse dos países membros da União Europeia avançar no sentido de mais integração subcontinental de cariz democrático e multilateralista, de mais federalização gradualista e negociada. Em alternativa ao egoísmo irracional (gerador de injustiça e de ineficácia) e ao altruísmo (postura eventualmente menos frequente quer se trate de indivíduos quer, sobretudo, de entidades colectivas), podemos, pois, enveredar por mais egoísmo racional.

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