Do fim ao (re)início da História: a Europa entre as identidades e as representações

Apontada como aparentemente falida e incapaz, a Europa continua a ser o único reduto capaz de posturas integradoras e humanistas.

Talvez um dos mais popularizados sentidos da História seja o misto entre a ideia de decadência, tão forte desde a mítica queda do Império Romano, com a representação da ciclicidade do devir humano. Tudo se repete, mais do que em círculos, em espirais de degenerescência imparáveis. Sejam os grandes impérios, os grandes homens ou as gerações, a anterior é sempre melhor ou, na versão popular, “no meu tempo é que era!...”.

Por mais que sejam claros os indicadores de progresso e de melhoria das condições de vida, tendemos sempre a ver no presente a medíocre aproximação a passados muito mais certos e moralmente intocáveis. Nessa visão, o futuro reserva sempre a catástrofe e a queda ou, pelo menos, a perda de valores.

Hoje, vivemos um tempo peculiar. Nunca se viveu tão bem na Europa e, contudo, muitos têm alimentado um discurso que parece assentar na inevitabilidade do fim da UE, suplantada ou subjugada por poderes variados. A Europa não reage, não avança, não se afirma, diz-se na vox populi, cimentada no mito das lentas respostas da UE, dando espaço para os populismos e os nacionalismos.

A narrativa pega em várias situações paradigmáticas, de geografias, poderes e políticas, que se afirmam contra ou em sentido oposto ao projeto europeu: EUA, China, mundo árabe e, por fim, Rússia. A triunfante “neo-Europa”, os EUA, plena de Liberdade, optou por colocar de lado a Igualdade, dando a primazia à livre iniciativa e a um Estado demissionário no campo do apoio social; economicamente, os dois modelos europeus, socialismo e capitalismo, ambos em crise no velho continente, estão em transmutação alquímica numa China que à economia subjuga toda e qualquer Liberdade; as famosas Primaveras Árabes redundaram numa afirmação da impossibilidade de exportar os modelos políticos da democracia para comunidades onde, numa espessura de vários milhares de anos, os regimes sempre foram autocráticos; por fim, o final da Guerra Fria implicou uma histeria vitoriosa, o famoso Fim da História, que vemos hoje ser apenas um novo início cheio de traumas e sede de vingança.

Apesar das duas crises mais recentes, pandemia e guerra na Ucrânia, terem mostrado uma Europa bem diferente dessa narrativa populista, a verdade é que, para muitos, parece clara a falência do modelo europeu, suplantado por vários outros que terminaram o ainda longo momento histórico de uma Europa que guiava o modelo de civilização vencedora.

Contudo, o proclamado “velho continente” continua a ser a referência, longe desses modelos que usam partes do “pacote da modernidade” gerindo-o a seu belo prazer, esquecendo uma parte fundamental: ou a Liberdade, ou a Igualdade, ou os direitos sociais e civis deles decorrentes.

Apesar de muito a História poder colocar de ónus variados na Europa, nos seus domínios colonialistas, por exemplo, a verdade é que, em última instância, o imaginário dos que buscam a frágil conjugação entre a Liberdade e a Igualdade continua neste continente. Apontada como aparentemente falida e incapaz, a Europa continua a ser o único reduto capaz de posturas integradoras e humanistas e, nestes tempos de duas crises consecutivas, com respostas até de eficácia a rapidez consideráveis.

No campo das representações, temos uma linha oposta ao das identidades. Se as identidades parecem ressurgir um pouco por toda a parte atrás de nacionalismos, a representação da Europa melhora e o projeto europeu parece ter ganho uma nova e, convenhamos, para muitos, inesperada vitalidade, sentido e legitimidade.

Reinventando a sua necessidade através das crises, a Europa redescobre o sentido que originou toda a dinâmica do pós-II Guerra Mundial: só uma união pode garantir uma paz duradoura e uma prosperidade que seja benfazeja para a esmagadora maioria da população.

Com a guerra na Ucrânia, corremos o agradável risco de virmos a assistir ao nascimento de uma conjugação entre os nacionalismos e o projeto europeu, fruto do sentido mais básico de sobrevivência.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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