É melhor poupar nas palavras?

É enorme a tentação de perante uma injustiça encolhermos os ombros e dizermos “outro que a denuncie”, e é gigantesca a vontade de dourar as nossas opiniões ou experiências que vão contra o politicamente correcto, que mexem com ideias feitas, ou que tocam lobbys e agremiações, mas não pode ser.

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Querida Mãe,

Depois de uma gripe — das mais tradicionais — e de vários dias sem voz, cheguei a uma conclusão. Falamos demais! Principalmente enquanto mães falamos demais. Não é só uma questão de que é bom ouvir o outro, nada disso, é mesmo dizermos coisas que não interessam, que nos cansam a nós e a eles e que, na verdade, verdadinha, não mudam nada.

Impedida de entrar em sermões daqueles que começam sempre com “É sempre a mesma coisa...” e que duram 30 minutos de uma ladainha sobre como sou uma vítima, na ausência de voz fui obrigada a sintetizar num “Preciso de ajuda: façam isto, façam aquilo”. Se funcionou sempre? Não! Mas os sermões também não funcionam, por isso pelo menos poupei as cordas vocais e a irritação que acompanha sempre os discursos inflamados (e que se auto-alimentam). Quando o Mini E. nos seus habituais dramas para se vestir de manhã, se viu confrontado com o meu silêncio, sem eternas negociações, ameaças e gritos, resistiu na mesma a que lhe enfiasse a T-shirt pela cabeça, e esperneou com as meias, mas acredito que tanto eu, como ele, chegámos ao carro menos cansados da minha voz.

Adoro falar. Adoro as palavras. Adoro analisar as conversas dos outros e adoro a conexão que a conversa nos traz, mas não há dúvida que há muitas coisas que ficam melhor não ditas. Que são só reflexo do ego, do calor da emoção do momento, mas que três segundos depois não têm qualquer tipo de relevância. Provavelmente também estou na ressaca de tanto “hate” nos comentários à carta em que — precisamente — pedia aos professores que não usassem tons e frases agressivas com os alunos. Terá sido isso que me fez tomar consciência de como podem ser violentos os desabafos, e de como é melhor poupar nas palavras?


Querida Ana,

Recupera a voz depressa porque precisamos dela. E se tens razão que não a devemos gastar em ladainhas que servem basicamente para sentirmos pena de nós mesmas, não tens nenhuma quando sentes vontade de ficar calada perante aquilo que está mal no mundo e pode e deve ser mudado.

É claro que custa ver destilar contra nós um ódio sem sentido, custa ver pessoas que não conhecemos de lado nenhum presumir que somos assim ou assado, acusando-nos de coisas que não nos passavam pela cabeça, mas não nos podem calar.

As redes sociais, e mesmo as caixas de comentários dos jornais (embora hoje já mais controladas do que há uma década), têm esse efeito perverso. Lembras-te de como vocês, ainda adolescentes, me imploravam que não escrevesse sobre um assunto mais polémico, com medo de que fosse trucidada nas páginas do Facebook? Recordas aquele momento em que, coitadinhos, vocês se enervavam tanto (e eu também) com a página de Facebook que alguém malévolo criou com o nome de “A parva da Isabel Stilwell”, e onde até deputados escreviam insultos? Pensei muitas vezes em calar-me, até para vos poupar (será que esta gente nunca pensa que temos filhos que lêem o que eles escrevem?), mas não escolhi ser jornalista para ficar em silêncio, e acredito que a coragem também se ensina pelo exemplo.

É enorme a tentação de perante uma injustiça encolhermos os ombros e dizermos “outro que a denuncie”, e é gigantesca a vontade de dourar as nossas opiniões ou experiências que vão contra o politicamente correcto, que mexem com ideias feitas, ou que tocam lobbys e agremiações, mas não pode ser. E não pode ser porque é a liberdade de expressão que nos distingue dos países onde vão presas as pessoas que se manifestam na rua ou escrevem a palavra “guerra” nos jornais. E é isso que temos de ensinar aos nossos filhos e netos.

Temos de exigir que enquanto “fazedores de opinião” saibam exprimir as suas opiniões sem violência, nem agressividade gratuita, mas que estendam essa postura também aos comentários que fazem nos posts dos outros, com respeito pelo autor da opinião de que discordam, pedindo-lhes que usem argumentos inteligentes para defender os seus pontos de vista, sem descerem ao insulto. Ironicamente é esse, igualmente, o papel dos professores, o que torna o teu pedido de que os mais velhos pautem a sua comunicação na escola pela boa educação e pelo respeito, absolutamente pertinente.

Ainda bem que tiveste a humildade (e a paciência) de responder, e com tanta abertura, a quem nos criticou tão desabridamente porque, diz-me a experiência, na maior parte dos casos é um desabafo de momento, uma expressão de um desespero corrosivo e longo que nada tem a ver com o que ali está escrito (muitos, lêem apenas o título) — quando interpeladas directamente as pessoas tendencialmente agradecem, conversam e é possível desescalar a tensão, a bem de todos. Noutros casos temos mesmo de aprender a ignorar, aceitando que não podemos fazer nada para evitar que nos rotulem injustamente com base nos seus preconceitos, tantas vezes — como aconteceu com a reacção de alguns à tua carta —numa linguagem, e num tom, que era, exactamente, aquela que queríamos ver bem longe das relações entre professores e alunos.

Por isso, Ana, cura-te com um golo de vinho do Porto que sempre te fez maravilhas à garganta, e não te cales. É uma ordem da tua mãe.


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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