Um irónico retrato na sétima de Shostakovich

O que talvez Shostakovich não imaginasse é que, passadas oito décadas, o seu trabalho voltaria a ser muito actual, mas que a sua pátria seria beligerante do lado do agressor. Substituíssemos nós Leningrado por Mariupol e o exército nazi pelo exército russo, e teríamos um simbolismo que de tão actual é arrepiante.

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Mariupol, Ucrânia Reuters/ALEXANDER ERMOCHENKO

No mundo de hoje, a guerra é assunto que não sai da agenda mediática. Crescem ódios e rancores a russos e retalia-se cancelando a sua arte de forma leviana e, porventura, acéfala. Em contraciclo, vem-me à mente um dos mais importantes marcos da cultura daquele país, nomeadamente a sétima sinfonia de Shostakovich, chamada Leningrado, alusiva ao cerco desta cidade soviética (actual São Petersburgo) pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial.

O início da sinfonia é rico em melodias bonitas, algo majestosas, retratando uma cidade supostamente feliz no ambiente pacífico do pré-guerra. Alguns minutos volvidos, no desvanecer de um solo de violino, começa-se de longe a ouvir um ostinato rítmico a cargo da tarola. Acompanhando-o, surge em pianíssimo e em pizzicato um tema nas cordas, replicado de seguida pela flauta, depois pelo flautim, e sucessivamente por vários instrumentos ou ensembles. À medida que este tema vai sendo repetido, a sonoridade torna-se cada vez mais densa e intensa, culminando numa violenta marcha nos metais, de carácter marcadamente militar, com as trompas introduzindo o caos próprio da guerra. À cidade de Leningrado havia chegado o cruel exército nazi. O primeiro andamento termina de forma calma, mas com resquícios da marcha anterior, denotando uma serenidade que é apenas aparente, dada a precariedade aterrorizante que se vive.

O segundo andamento é o mais curto. O militarismo do primeiro é menos vincado, mas está sempre presente. Os temas que se ouvem transpiram ansiedade e desalento, e qualquer esperança redunda em desespero. No final, um longo solo de clarinete baixo transmite um carácter sombrio, próprio de uma cidade que sofre um tratamento hediondo, verdadeiramente bárbaro e desumano.

Segue-se um terceiro andamento de natureza mais clerical, que alguns académicos dizem ser uma marcha fúnebre que se auto-explica. Por entre os laivos de dor que os acordes vão traspassando, ouvem-se esporadicamente fogachos de crença num futuro melhor, que se materializará gradualmente à medida que se entra no último andamento.

Após cerca de 75 minutos de música, há novamente um escalar de intensidade na orquestra que demonstra a herança da guerra. Uma herança de perda, de lamentação. Um recordar de que nada daquilo era desejado. O final não é feliz. É, ao invés, pleno de realismo, ou não tivesse sido a sinfonia composta no período em que durou o cerco. É, contudo, um fim repleto de vontade. Vontade de sobrevivência, vontade de transformar as fraquezas em forças que permitam sanar um orgulho ferido.

O cerco de Leningrado foi devastador. Não admira, por isso, que a arte tenha deixado de existir na cidade. Contudo, uma composição desta magnitude deu alento. Interpretá-la tornou-se uma vontade política, um elemento agregador que pretendia moralizar os soviéticos daquela cidade. A performance ficou a cargo dos poucos sobreviventes da Orquestra Radiofónica de Leningrado, famintos devido às vicissitudes da guerra. Relatos da época dizem que frequentemente colapsavam músicos nos ensaios e que no caminho até ao concerto pereceram três deles. Mas, mesmo em condições deploráveis, o patriotismo falou mais alto e, a 9 de Agosto de 1942, dia em que supostamente Hitler previa a queda da cidade, o concerto aconteceu mesmo, transmitido não só para soviéticos como para os soldados alemães que não tinham como se refugiar do som que emanava das colunas espalhadas pela cidade.

Artisticamente, a performance foi expectavelmente fraca, mas muito carregada emocionalmente, tendo recebido uma ovação que (reza a lenda) durou uma hora. O cerco a Leningrado não terminaria tão cedo, mas pelo menos naquela hora e meia sentiu-se algo novo, houve uma premonição daquilo que viria a ser uma vitória futura. “Naquele momento, triunfámos sobre a desumana máquina de guerra nazi”, terá afirmado o maestro da ocasião, Karl Eliasberg.

Shostakovich fora um génio. Dotado de um fino sarcasmo artístico, fora um crítico incrivelmente dissimulado de Estaline, a tal ponto que mesmo assim era frequentemente usado como objecto de propaganda. A sua sétima sinfonia não só é um dos mais belos trabalhos alguma vez produzidos, como é de uma importância histórica imensurável, fazendo pouco sentido ser cancelado. Ironicamente, o que talvez Shostakovich não imaginasse é que, passadas oito décadas, este seu trabalho voltaria a ser muito actual, mas que a sua pátria seria beligerante do lado do agressor. Substituíssemos nós Leningrado por Mariupol e o exército nazi pelo exército russo, e teríamos um simbolismo que de tão actual é arrepiante.

Os ucranianos vivem hoje algures no final do primeiro andamento, mas compreendem já em si a força interior que caracteriza o final da obra. É meu desejo que não tenham que vivenciar todo o resto da sinfonia, enquanto boa parte do mundo assiste de forma apática, desídia e deveras autocêntrica. Até lá, saibamos aprender com a cultura russa, que não é só feita de vilões.

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