Ambiente: “As pessoas mais próximas dos problemas têm as melhores soluções”

É uma das discussões do momento nos EUA, mas em 2009 Nova Iorque via nascer um projecto pioneiro que já ligava a preocupação com o ambiente às questões sociais, nomeadamente ao desemprego jovem em bairros desfavorecidos da cidade. Lisbeth Shepherd, co-fundadora da Green City Force, esteve em Lisboa e deixou sementes para futuras colaborações por uma economia verde inclusiva.

No início de 2021, um Joe Biden recém-empossado presidente dos EUA relançava o compromisso nacional e internacional do país com a agenda climática e anunciava a criação do Civilian Climate Corps, uma iniciativa financiada pelo governo federal destinada a empregar dezenas de milhares de jovens para combater as mudanças climáticas. Mais de uma década antes, em Nova Iorque, a empreendedora Lisbeth Shepherd ajudou a fundar um projecto pioneiro, baseado precisamente nessa premissa: uma “economia verde inclusiva” poderia ajudar comunidades desfavorecidas a quebrar o ciclo da pobreza e, simultaneamente, integrar essa geração mais jovem no esforço de combate às alterações climáticas.

A investigadora, hoje no MITdesignX, um programa da Escola de Arquitectura e Planeamento do MIT ​(Instituto de Tecnologia de Massachusetts) dedicado à inovação e ao empreendedorismo, esteve em Portugal no final de Março a convite da Nova School of Business and Economics (Nova SBE) e falou ao PÚBLICO sobre a iniciativa nascida em 2009, o “ecossistema de inovação social” que encontrou em Lisboa e a possibilidade de um regresso para meter as mãos ao trabalho.

A Green City Force (GCF) propunha-se criar um modelo que tornasse real a promessa de uma economia verde inclusiva para jovens adultos em comunidades negras de baixos rendimentos em Nova Iorque. O projecto foi incubado pela Blue Ridge Labs e o programa piloto lançado em parceria com várias entidades, entre elas a The Corps Network, a associação que a nível nacional congrega este tipo de iniciativas de serviço comunitário. Em 2010, a GCF começou a recrutar voluntários em parceria com a New York City Housing Authority (NYCHA), entidade gestora do parque habitacional público da big apple.

“Haveria uma componente de trabalho comunitário, orientada para oportunidades de carreira na economia verde. Com enfoque em jovens afro-americanos e latino-americanos que vivem na linha da frente de tantas questões de justiça ambiental. Queríamos criar uma plataforma para esses jovens poderem liderar, com a qual pudessem aprender e desenvolver-se. A Green City Force nasceu para tornar isso concreto”, conta a empreendedora, hoje consultora do projecto nova-iorquino.

Rumo a um futuro melhor

“Antes da GCF, eu não estava a fazer nada. Andava simplesmente à procura de empregos que resultariam em simples pagamentos, sem perspectiva de crescimento. A GCF ajudou-me a dar um grande passo rumo à minha futura profissão de electricista”. O testemunho é de Marcus Mortise, que se “graduou” em 2019, pode ler-se no site da GCF.

O projecto conta com “700 graduados” até à data, que, como Marcus, depois de passarem por uma experiência de seis a oito meses, a tempo inteiro, conseguiram emprego ou criaram o próprio emprego nas áreas da “energia solar, eficiência energética, manutenção de edifícios e operações, compostagem, reciclagem, arquitectura paisagista, agricultura urbana, construção verde”. “Alguns foram as primeiras pessoas de cor a entrar nestes negócios”, sublinha Lisbeth.

Alguns encontraram emprego através de entidades parceiras, outros encontraram uma saída na GCF, como Joshua Owens. No Instagram do projecto, escreve: “A melhor parte do meu trabalho diria que é fazer parte de forças de liderança que promovem mudança ambiental através de um cluster de áreas na nossa Empresa Social: eficiência energética, arborização urbana e saúde e segurança. Ter a capacidade de apoiar, enquanto líder de opinião, tem sido muito importante para mim. Não agarrar apenas as oportunidades que vêm ter comigo, mas planear aquilo que faz sentido para nós como organização e para as carreiras dos nossos Alumni no futuro”.

Sem ter certezas sobre “onde estavam esses empregos” – “há cinco ou seis anos havia uma grande expectativa nos empregos em torno da energia solar, e isso não se materializou, por exemplo” –, a estratégia passou por ajudar as pessoas a “recuperar, a reorientar a sua formação” para outras saídas.

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Lisbeth Shepherd daniel rocha/PUBLICO

E o ambiente? “No centro do modelo GCF, está a criação de grandes hortas urbanas com canteiros elevados no meio de empreendimentos habitacionais, que são concebidas como hubs ecológicos e resilientes. Estas equipas de jovens desenham e constroem as hortas [são já seis], põem-nas a produzir, depois outros jovens chegam e mantêm-nas e expandem a actividade. Os produtos que saem dessas hortas são distribuídos pelos moradores em troca da entregam de compostagem. Isto foi mais ou menos suspenso durante a pandemia, mas antes, quando funcionava em pleno, nesses bairros a compostagem subiu para níveis que víamos em comunidades mais favorecidas.”

“O desafio actual é como abrir isto a mais pessoas? Isso acontece com colaborações e parcerias público-privadas. E isso em parte é o que me trouxe à Nova.” Isso e a ligação a Anne-Laure Fayard, professora e investigadora na área da inovação social e coordenadora da nova ERA Chair (ERA – European Research Area), uma cátedra financiada pela União Europeia e cuja ideia é desenvolver um centro de investigação em inovação social. Anne-Laure Fayard fez trabalho de investigação sobre a GCF e ajudou a liderança da GCF a perceber que o que faziam então era design thinking, embora não lhe dessem esse nome.

Se Lisboa quiser, seria um prazer

Oficialmente, Lisbeth e Anne-Laure começaram a colaborar em “junho de 2018”, num workshop de design thinking. Foi Anne-Claire Pache que as juntou. Esta especialista em inovação social e à data na Universidade de Nova Iorque, onde Anne-Laure também estava, havia fundado a Unis-Cité em 1994 com Lisbeth. Esse projecto e a experiência de dez anos em França lançaram a carreira de Lisbeth e inspiraram a GCF. AO reencontro em Nova Iorque trouxe Lisbeth a Lisboa. “Durante pouco mais de dois anos, fizemos entrevistas com todos os parceiros. Passei depois algum tempo a trabalhar com a GCF a mapear a experiência deles. E durante três meses acompanhei semanalmente duas equipas. Mudou muitas das minhas percepções”, explica Anne-Laure Fayard.

As três têm agora “um artigo em revisão num jornal académico”. Esse histórico de colaboração levou Anne-Laure, que chegou à Nova SBE em Setembro e está ainda a desenhar a estratégia da cadeira, a convidar Lisbeth para estrear o programa Social Innovators in Residence, que deverá receber quatro empreendedores por ano, dois na Primavera e dois no Outono, entre gente de fora e inovadores baseados em Portugal. E, durante a entrevista que as duas deram ao PÚBLICO, ficou registado um segundo convite: para que Lisbeth integre o futuro conselho consultivo da nova cátedra de Inovação Social, aonde no Outono chegarão os professores assistentes Alison Holm e Paolo Leone.

Dentro da faculdade, Lisbeth ficou a conhecer o centro Leadership For Impact e a iniciativa Inclusive Community Forum. Na cidade, visitou o Impact Hub Lisbon e o projecto Largo Residências e fez uma apresentação na Casa do Impacto. Gostou do que viu e de encontrar “algo poderoso no que já existe, como o Portugal Inovação Social”. “Segundo percebi, é o primeiro na Europa”, saudou.

A questão dos recursos surgiu a cada interacção. “E é tão importante, que eu coloco-a logo à frente. A minha carreira inteira tem sido possível por uma bolsa, da Echoing Green, que em 1993 era de 15.000 dólares. Não me permitiu apenas começar, no Unis-Cité, permitiu-me lançar as sementes do que viria a fazer depois. Na Green City Force eu também fui bolseira, através da Fundação Draper Richards Kaplan.”

Numa semana, diz ter percebido “que há em Portugal tremendo potencial e dinâmica”, que “a longa história do país e a diversidade das pessoas são enormes mais-valias”, assim como “a criatividade e o cuidado”, que entendeu fazerem parte da nossa cultura. E, claro, “o foco no ambiente nos últimos anos”. A oportunidade agora “é juntar tudo isso, pensar de forma holística”, vaticina Lisbeth, que se mostrou disponível para voltar e ajudar a criar uma iniciativa semelhante ou inspirada no GCF.

“Se a cidade de Lisboa decidir que um dia quer criar um Climate Corps ou se as pessoas das organizações alinhadas com esta ideia sentirem que é o momento e a desenvolverem em rede, terei todo o prazer em voltar e participar nessa colaboração da forma que puder. E tenho a certeza que terei muito a aprender. Adoraria regressar se se perceber no futuro que há dinâmica em torno deste tipo de ideia, em que estamos a trabalhar.”

70% de jovens desempregados

Lisbeth devolveu a ideia na Unis-Cité, que fundou com Anne-Claire Pache mas também com Marie Trellu-Kane e Julie Chenot. E quando regressou aos EUA teve oportunidade de se juntar a “um movimento muito empolgante em torno da [então] emergente economia verde”. Quer o Unis-Cité, quer a Green City Force nasceram porque houve quem acreditasse e lhe atribuísse uma bolsa, como fez questão de sublinhar nos encontros que teve com professores e alunos da Nova SBE e com vários projectos de inovação social em Lisboa.

Lisbeth conta que nem sempre o esforço de colectivos como a GCF “foi financiado como devia”, mas diz que nos EUA “há uma tradição longa de justiça ambiental” e vê com os melhores olhos a mudança prometida por Biden. “Há uma dinâmica incrível, que incorpora a justiça ambiental em muitas agências. É verdade ao nível federal, estatal e local. No que diz respeito a políticas públicas, houve uma mudança grande. Não é que houvesse resistência com a GCF, mas é um esforço ambicioso o que temos tentado fazer. Na avaliação da própria NYCHA, que é senhoria de 500.000 pessoas em Nova Iorque – é um sistema muito grande –, 70% dos jovens entre 18 e 25 anos estavam desempregados antes da pandemia. É um número enorme. E essa é uma grande questão. E há depois as questões relacionadas com o ambiente: o parque habitacional envelhecido, a consequente ineficiência energética, a saúde e segurança, o mau estado de conservação das casas”.

O modelo da GCF nasceu dentro da AmeriCorps, uma rede nacional de programas de voluntariado estabelecida durante a administração Clinton e que abrange “anualmente entre 75.000 e 100.000 pessoas”. Foi neste ecossistema que os democratas Edward J. Markey e Alexandria Ocasio-Cortez defenderam que fosse operacionalizado o Civilian Climate Corps do Green New Deal americano. “O que foi proposto [nesse novo Pacto] tem grande apoio dos cidadãos, independentemente do partido em que votam. E é uma versão muito maior do que fazemos na GCF”.

Versão que faz lembrar, a muitos americanos, um programa chamado Civilian Conservation Corps. Defendido por Franklin D. Roosevelt, como instrumento para sair da crise da Grande Depressão, funcionou de 1933 a 1942 e colocou milhões de jovens a trabalhar por todo o país, então na infra-estrutura dos Estados Unidos.

O projecto de Nova Iorque já “tem organizações irmãs em quase todas as cidades” na tal rede mais alargada a que pertence, a The Corps Network. E Lisbeth está agora directamente ligada à cidade de Boston, uma vez que a investigação que está a iniciar terá o seu trabalho de campo precisamente na capital do estado norte-americano de Massachusetts.

E esse trabalho, para já no MITDesignX e em Boston, procura precisamente perceber se é possível passar de “um modelo de programa específico [como a GCF] para uma ideia mais abrangente”. “As pessoas mais próximas dos problemas têm as melhores soluções”, mas o modelo para as unir e mobilizar pode ser exportado. Será? “Precisamos de trabalhar localmente, mas imaginar como isso pode dar origem a um verdadeiro sistema que transforme [territórios e vidas]”.

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