A Jada, o Will, o Chris e a violência nas suas várias formas

Olhar para cada um dos três atores envolvidos no episódio dos Óscares ajuda-nos a refletir sobre as formas mais ou menos insidiosas que a violência toma nas nossas sociedades.

O episódio de violência na noite dos Óscares tem dado muito que falar, passando de fait-divers a uma discussão potencialmente produtiva. Os dois flancos opostos que se criaram – quem defende a liberdade de expressão e quem defende a necessidade de proteção – convergem numa reflexão crucial: que formas de violência testemunhámos naquele momento e por que nos devem estas desassossegar? Olhar para cada um dos três atores diretamente envolvidos ajuda-nos a refletir sobre violência em geral e as formas mais ou menos insidiosas que esta toma nas nossas sociedades.

A Jada Pinkett Smith (JPS) sofre de uma condição clínica – a alopecia – que, não sendo fisicamente debilitante, tem um impacto psicológico particularmente duro numa mulher numa sociedade patriarcal, e mais ainda numa mulher em Hollywood. Embora lidar com a perda de cabelo não seja certamente uma experiência nada fácil, a JPS transmite a imagem de uma mulher forte, que não só rapou o cabelo como reconheceu publicamente a doença, parecendo ter encontrado uma forma de lidar com ela que a empodera, em vez de a enfraquecer. É um ato francamente corajoso e admirável perante a persistente violência cultural que é exercida contra todas as mulheres em geral, e contra as mulheres negras em particular, forçadas a cumprir padrões de beleza ditados essencialmente por homens brancos.

A minha primeira reação perante o que fez o Will Smith (WS) foi de indignação, precisamente por ter contribuído para transformar em fragilidade o que aparentava robustez. E, no entanto, mesmo alguém que aparenta ser forte não é constantemente forte; há, de facto, comentários que caem como bombas; e, infelizmente, a autoestima de uma mulher no contexto do patriarcado tem uma irritante tendência de operar como um pêndulo, nem sempre controlável. A piada (com ou sem intenção) foi sentida como violência psicológica, traduzida na forma de humilhação pública. E todas e todos nós, sem exceção, ainda que com graus variados, sabemos o que isso é: não há ninguém que nunca tenha ouvido um comentário em público que a/o tenha magoado profundamente; e não há ninguém que não tenha sentido alívio e gratidão por ver alguém a vir em sua defesa quando se sentiu sob ataque. É muito razoável que haja essa expectativa, nomeadamente dentro de um casal. E às vezes precisamos desesperadamente de demonstrações públicas de empatia e proteção. Tudo isto nos aproxima da JPS, mas não tem que nos aproximar necessariamente do WS.

Quem considera o WS essencialmente protetor separa a forma (condenável) que escolheu para proteger, do seu (louvável) instinto de proteção. Não é possível, porém, dissociar reação, de reação violenta, neste caso. E não foi apenas violência física: isto é, não foi só o estalo que foi violento, foi toda a performatividade de masculinidade tóxica – o caminhar ameaçador, até algo lento e ominoso, de alguém que sabe que é fisicamente superior, o ar de justiceiro, o estalo que apanha o outro desprevenido e vulnerável, as palavras de posse quando regressa à cadeira, o discurso justificativo de que o amor nos faz cometer loucuras (reafirmando uma mantra de impunidade que deixou certamente todas as vítimas de violência doméstica a assistir absolutamente estarrecidas). Pelo caminho, ainda menorizou a reação certeira da JPS: aquele revirar de olhos perfeitamente mortífero no momento que se segue à piada. A mensagem que passa é a pior possível: que só com violência física se resolve o que possa ser sentido como uma ofensa. E é contraproducente: a atitude do WS não gerou no Chris Rock (CR) mais respeito pela JPS ou pela sua condição de saúde; gerou medo da retaliação. Ninguém ficou a ganhar.

Mesmo quem julga o seu comentário de forma menos benevolente, terá de reconhecer que o CR acaba por não só ser vítima de um ato de agressão física mas também da profunda humilhação contida em todo o gesto de intimidação e de reposição de superioridade (física e moral) por parte do WS. Quem reconhecera a humilhação da JPS como uma forma de violência, só pode, por coerência, reconhecê-la igualmente em CR. Há um momento na sua expressão que é de uma enorme fragilidade: de alguém que acabou de ser agredido e não sabe como se defender em conformidade. Que ele tenha optado por rotular aquele momento de violência como “o maior momento da história da televisão”, glorificando-o às suas próprias custas, foi ainda mais penoso de assistir.

O CR tem sido essencialmente entendido pelos arautos da liberdade de expressão como o exemplo do que pode acontecer a um comediante quando os ouvintes julgam lhes caber a decisão sobre um suposto limite das piadas; representa o perigo da restrição dessa liberdade passar a englobar a censura física. Na realidade, que tipo de piadas são socialmente aceites não é uma discussão estática nem deve ser tabu. Há, contudo, um contexto específico aqui que apela a uma certa responsabilidade coletiva. A função explícita de um comediante neste tipo de eventos é a de entreter, mas a implícita é a de tornar um momento fútil e algo absurdo de multimilionários esbeltos a receberem prémios e ovações um pouco mais consumível: há, de um lado, uma espécie de consentimento tácito de quem participa na autocongratulação poder ser alvo de vexame, e, do outro, uma audiência que clama por piadas vexantes, que só fazem sentido neste contexto se forem íntimas e personalizadas. Quanto mais a piada pisar a linha, mais audiência tem – veja-se o sucesso da apresentação dos Globos de Ouro por parte do Ricky Gervais (e, este ano, os Óscares aproximaram-se bem mais desse modelo).

O CR não tem, em boa verdade, que assumir sozinho a responsabilidade de um ato de que é claramente o protagonista, mas de que todos nós, audiências, somos cúmplices. Também por isso não podíamos ter-lhe recusado o papel de vítima, ao normalizarmos a agressão e permitirmos simbolicamente a posição insólita de ter que terminar a apresentação sob o olhar impune de quem o acabara de agredir.

É verdade que a violência física não é necessariamente pior do que a violência psicológica; e não é certamente pior do que a violência estrutural e cultural que as subjaz. Mas a violência física não é mais aceitável só porque identificamos as outras formas de violência que a provocam: ou seja, não resolvemos o sintoma sem lidar com as causas, mas não é a desvalorizar o sintoma que as causas se resolvem.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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