Premiar o(s) outro(s)

O Prémio J. Norberto Pires de Inovação foi aprovado em Conselho Geral da Universidade de Coimbra, a 28 de março de 2022.

Admitindo a sua importância enquanto reconhecimento, mobilização de comunidades e impacto mediático, sempre tive alguma relutância com prémios, sejam eles quais forem. No entanto, em 2022 fui eu mesmo a propor a criação de um prémio. Considerei, pois, que havia uma importância que se sobrepunha à minha relutância.

A motivação imediata foi o falecimento trágico e inesperado de um colega, no Verão de 2021; o prémio tem o seu nome, enquanto homenagem. Na discussão interna que se seguiu à proposta foram evidentes algumas objeções lógicas, que eu talvez até partilhasse, se não tivesse sido o proponente. Tratava-se de uma proposta feita como reação a um momento com uma forte carga emocional, e a amizade poderia toldar algo que deve ser visto de forma mais institucional, no sentido em que (muitas) outras pessoas poderiam merecer (ou ter merecido) honras similares. A questão é que, para mim, não se tratava de algo espontâneo ou toldado pela emoção, mas o culminar de um processo reflexivo com 11 anos. E que, paradoxalmente, não tinha a ver com o colega em causa de forma direta.

Em 2011 fui convidado para jurado no Prémio Universidade de Coimbra, que seleciona anualmente uma figura relevante. Nunca me tinha passado pela cabeça tal hipótese, e aceitei enquanto mini experiência científica, para validar (ou não) os meus vieses quanto a prémios. Posso resumir essa tarefa numa observação: sem por em causa o grande mérito do vencedor, tínhamos dificuldades em premiar membros da nossa própria comunidade. As justificações para não subscrever diferentes nomeações eram elaboradas, a minha é simples: é mais fácil premiar alguém de fora porque causa menos desequilíbrios internos. Se se der o prémio à Professora A da Faculdade X representante da Corrente Ómega, revolta-se quem achava que devia ser o Professor B da Faculdade Y representante da Corrente Alfa. Caso o premiado seja externo aceita-se melhor. Prémios e homenagens internos são possíveis (se bem que não-lineares), desde que circunscritos (a uma faculdade ou departamento, por exemplo), porque aí a responsabilidade é focada, são “elas e eles que lá estão que decidiram”, não fomos “nós”. As pequenas invejas mesquinhas são as mesmas, mas mais disfarçadas. Claro que há também honrarias nacionais, de dois tipos: as merecidamente nacionais, e aquelas que apenas o são porque quem tem o poder para isso transferiu o seu local para nacional.

Fiquei, admito, muito chateado com estas revelações, mas sou cientista e só tinha um exemplo; a “experiência” tinha aquilo que designamos por N=1. Por isso, nos anos seguintes dediquei-me a investigar, propondo candidaturas fortes ao mesmo prémio e estimulando outros a fazer o mesmo. E fui falando com os colegas em júris de prémios similares noutras instituições, para confirmar (ou não) as minhas observações. Parei com N=7, porque todas as experiências apontavam no mesmo sentido, e insistir numa mesma coisa à espera de um resultado diferente é a inspirada definição que Albert Einstein deu de loucura. Portanto, tinha um diagnóstico, mas é bom não ficarmos por aí.

Na vida tenho duas caraterísticas relevantes neste contexto: digo o que penso, e tento sempre perceber. Antes ficava também irritado quando percebia e não concordava, mas essa (quase que) já me passou, e até aprendo mais quando discordo. A questão, também, é que me tendo a exprimir de um modo que pode ser visto como menos institucional (para não dizer outra coisa). Não é algo que me tenha sido útil em termos de carreira, mas à medida que me vão conhecendo, pessoas amáveis em posição de o fazer, tendem, por amizade ou por pena, a explicar de forma anónima as razões que informam as minhas perplexidades. Aprendi, por exemplo, que era visto como muito próximo das propostas que fazia de possíveis homenageados; portanto como atuando, no fundo, em causa própria, ainda que indireta. Achei uma argumentação bizarra, mas, mais importante ainda, pensei no assunto; chegando à conclusão de que só voltaria a propor algo similar em circunstâncias onde nada daquilo me pudesse ser apontado. Ou seja, teria de homenagear um Outro, ao qual nada me ligasse.

Anos depois surgiu essa oportunidade. Reconhecendo ao meu malogrado colega qualidades inegáveis, não nos unia qualquer relação de amizade. Na verdade, até tínhamos sido adversários em eleições, e voltaríamos a sê-lo, porque tínhamos discordâncias profundas. Mas na sua vida, infelizmente abreviada, tinha dado contributos importantes, não só na sua área específica, mas abraçando causas diversas (do científico ao social) e agitando as águas com uma grande energia e sentido de missão. Claro que não era, nem de perto nem de longe, uma pessoa consensual, e tudo o que acabo de dizer sugere isso mesmo. Mas acreditem que não há nas instituições (quaisquer instituições) muita gente assim. E, podendo ser por vezes exasperantes, fazem muita falta. A proposta de o homenagear materializou-se pois de forma nada espontânea, e sem que me pudesse ser imputada uma qualquer motivação, para além de reconhecer o mérito de um colega de quem quase tudo me afastava; uma pessoa que não podia ser mais o Outro. Teve na sua vida pessoas que o terão amado e admirado muito mais; mas, se a teoria está correta, seria preferível que fosse alguém distinto a dar este passo.

Resta-me agora aguardar, com esperança, que outros possam abraçar esta lógica (à partida nada lógica) para propor algo similar dirigido àqueles a quem eu, por razões de proximidade pessoal ou profissional, aparentemente, não posso homenagear, se não de forma íntima e informal. Sei que eles e elas apreciam. Mas mereciam mais.

P.S.: O Prémio J. Norberto Pires de Inovação foi aprovado em Conselho Geral da Universidade de Coimbra, a 28 de março de 2022.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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