Torre de marfim

O que faz falta são quotas étnico-raciais no acesso à carreira de investigação e aos lugares de decisão nas estruturas e projectos científicos.

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Nelson Garrido

No início deste mês fecharam-se os concursos nacionais às principais oportunidades de trabalho científico da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), nomeadamente o “Estímulo ao Emprego Científico Individual” e os “Projetos de I&D”. Neste preciso momento, milhares de candidaturas repousam na plataforma myFCT aguardando a sempre demorada e diminuta seleção. Quantos/as investigadores/as afrodescendentes e Roma/ciganos/as terão concorrido e quantos/as ganharão? Estarão em posição de coordenação de projectos? Infelizmente não saberemos, já que prevalece uma política de “daltonismo racial” (color blindness), em Portugal.

Se noutros setores da sociedade portuguesa as desigualdades étnico-raciais serão marcadas, no campo da ciência – sector profundamente elitizado, liberalizado e precário – as chances são quase nulas e isso deveria preocupar as instituições com maior responsabilidade nas políticas nacionais de gestão de ciência. O financiamento público da ciência – pago por todas e todos, mas usufruto só de alguns – é regulado por uma lógica meritocrática e de “resultados”, cego face às desigualdades sociais e étnico-raciais que (re)produz, bem como à precarização do trabalho científico.

No Inquérito aos Doutorados (DGEEC, 2020), o único dado que se pode convocar – uma espécie de proxy muito distante – da origem étnico-racial dos/as doutorados/as, mas que não dá conta da origem Roma/cigana e afrodescendente, é que existem 2030 doutorados/as naturais dos PALOP (5% do total). Uma análise pormenorizada desses dados mostra-nos que não se trata da diáspora negra pós-colonial em Portugal, mas muito provavelmente de população branca “retornada” nascida em África. Serão, com certeza, poucos/as os/as investigadores/as racializados/as, mas existem e, como tal, é necessário conhecer a sua inserção no sistema científico.

Outra forma de olhar para estas questões remete para as linhas temáticas de investigação. O racismo na sociedade portuguesa é um “nicho” periférico das ciências sociais; por sua vez, as ciências sociais são um parente pobre entre os vários domínios científicos; e, por fim, a própria ciência, em geral, está longe de ser prioridade nos Orçamentos do Estado. Portanto, serão pouquíssimos os projetos selecionados no quadro dos referidos concursos da FCT que se proponham investigar estes temas e que o façam mobilizando abordagens não-eurocêntricas e descolonizadas.

Se considerarmos a investigação acumulada sobre a história colonial e escravatura, e mesmo os trabalhos sobre a resistência negro-africana ao colonialismo ou sobre a “presença negra” no Portugal escravocrata, vemos que, em muito, têm dispensado as e os historiadores/as negros/as nas suas equipas e referências teóricas. O mesmo acontece na antropologia, sociologia e geografia, que há muito estudam as comunidades da periferia negra e suas expressões artísticas, as narrativas da diáspora africana, a integração de imigrantes africanos e das comunidades Roma/ciganas e outros temas. Na psicologia, temos um cenário semelhante. Até encontramos investigação sobre racismo, não encontramos é investigadores/as negros/as e Roma/ciganos/as. Aceitar-se-ia, em 2022, que numa obra coletiva ou conferência sobre mulheres e feminismos as participações fossem esmagadoramente masculinas? Este estado de coisas deveria provocar descrédito e constrangimento, mas sobretudo suscitar ação e, acima de tudo, ação afirmativa.

Postas as coisas como estão, o espaço exíguo que poderia existir para investigadores racializados nessa área é ocupado por investigadores/as brancos/as que estudam estes temas há anos, e por aqueles que só agora começam a estudá-lo porque na era Black Lives Matter se tornou trendy e porque são forçados a dar mostras de inovação e diferenciação num sistema que se move pela batuta liberal, pago com dinheiros públicos. Estas “apropriações científicas” não são da inteira responsabilidade de investigadores/as a título individual. Mas espera-se que, ao menos, quem trabalhe o tema vá reconhecendo explícita e publicamente – oralmente e por escrito – as questões do “lugar de fala” e os problemas da falta de representatividade étnico-racial na produção de conhecimento. Se os pruridos de homo academicus brancus não permitem uma tomada de posição política sobre o futuro da nossa comunidade científica quanto ao racismo institucional e estrutural que a atravessam, podem sempre refugiar-se no bê-á-bá da epistemologia das ciências sociais e, por tímida analogia, abordar as condições étnico-raciais (e não apenas as de classe) na produção do conhecimento científico.

Aqui e ali, mais por decisão individual do que institucional, vão surgindo gestos que procuram contrabalançar o gap étnico-racial na ciência. Infelizmente, no mais das vezes vai-se pouco além do “tokenismo”. Dá-se então o caso, e não é rara a vez, de se convidar uma pessoa racializada para um painel – mesmo que ela não trabalhe o tema em discussão – para falar sobre a sua “experiência” e não sobre o seu trabalho e/ou sobre análise científica do racismo (como os restantes convidados/as); colocam-se obras de artistas racializados/as no início e no fim de uma exposição historiográfica, mas sem que o corpo principal da exposição dialogue com a historiografia realizada por intelectuais negros/as. Tem tardado uma manifestação pública da comunidade científica sobre o racismo institucional, no plano epistémico e no acesso à academia, na sua própria casa. Onde estão as cartas abertas e as petições a exigir maior representatividade étnico-racial na ciência? Onde estão as listas racialmente diversificadas para corpos dirigentes de centros de investigação, reitorias ou conselhos científicos?

No plano das estruturas mais institucionalizadas – dos centros de investigação, à Fundação para a Ciência e Tecnologia e Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior – parece não haver interesse e/ou coragem para abandonar a postura do “não vemos cores”, reconhecer o problema e agir. O que faz falta são quotas étnico-raciais no acesso à carreira de investigação e aos lugares de decisão nas estruturas e projectos científicos, vínculos laborais condignos, linhas de financiamento científico e de formação avançada que permitam a consolidação dos Estudos Negros e Roma/ciganos em Portugal. No fundo, uma política científica afirmativa no combate ao racismo que reconheça a sua dívida histórica, a necessidade de “justiça distributiva”, mas também que, em termos éticos, políticos, sociais e científicos, a academia precisa desta mudança.

PS - Não, não se disse aqui que só as pessoas racializadas podem estudar o racismo.

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