Will Smith, “a minha mulher” e as múltiplas masculinidades

A agressão de Will Smith a Chris Rock envolve, certamente, muitas dimensões de análise (de classe e privilégio, passando pela fábrica do espectáculo hollywoodesca). Porém, a construção da masculinidade é central em todo o episódio: da mulher sem cabelo como objecto de humor à reacção violenta de Will Smith, num gesto que parece encenar a velha ideia de protecção masculina, como se precisássemos ainda de tutores e guardiães (obviamente, homens).

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Reuters/BRIAN SNYDER

“Deixa o nome da minha mulher fora da merda da tua boca” (“Keep my wife’s name out of your fucking mouth”). Foi com estas palavras que Will Smith, consagrado actor norte-americano, se dirigiu a Chris Rock, apresentador na cerimónia dos Óscares, depois de o esbofetear. Chris Rock tinha acabado de fazer uma piada sobre o cabelo rapado de Jada Pinkett Smith, tendo a actriz (com quem Will Smith é casado há décadas) reagido com palpável desconforto. Jada Pinkett Smith, que sofre de alopecia areata – doença auto-imune que causa a perda capilar –, apresenta-se com a cabeça rapada, numa clara transgressão dos imperativos de beleza hollywoodescos.

Há, como sempre, reacções diversas: há quem aplauda o gesto de Will Smith e o encare como uma defesa de Jada e da família; há quem discuta (novamente) os limites do humor, e ainda quem aponte o gesto de Will Smith como expressão de sexismo (subscrevo).

A agressão de Will Smith a Chris Rock envolve, certamente, muitas dimensões de análise (de classe e privilégio, passando pela fábrica do espectáculo hollywoodesca). Porém, a construção da masculinidade é central em todo o episódio: da mulher sem cabelo como objecto de humor à reacção violenta de Will Smith, num gesto que parece encenar a velha ideia de protecção masculina, como se precisássemos ainda de tutores e guardiães (obviamente, homens).

Neste, como em tantos outros contextos, importa lembrar que a masculinidade tem múltiplas expressões: é ora camuflada, ora explícita; é tanto violenta, hostil e agressiva, como protectora e paternalista. Manifesta-se quer na violência contra as mulheres, quer como na violência contra outros homens, alegadamente em nome e defesa das mulheres. E de mulheres específicas, aquelas que merecem, por estatuto ou categoria relacional, protecção: “a minha mulher”, nas palavras de Will Smith, mas também “a minha mãe ou irmã”. Que tantas campanhas de sensibilização sobre a violência sexista repitam esta fórmula só demonstra o quão enraizada é esta visão: como se existíssemos sobretudo por relação a outrem (masculino), enquanto mulheres de alguém, mães ou irmãs de alguém. No fundo, como se ser uma pessoa nunca nos bastasse.

Este é um legado profundamente patriarcal, onde as mulheres existem como extensão e domínio do pater. A protecção da dita honra das mulheres é, nesta lógica, a protecção da sua própria honra e masculinidade, da sua propriedade. É este o princípio dos designados “crimes de honra”, que tendemos a considerar como culturalmente tão distantes: a dita “honra” das mulheres não lhes pertence, mas aos homens da família; é a eles que cabe reagir, retaliar, ajustar contas.

“Fazemos loucuras por amor”, disse Will Smith no seu discurso de aceitação dos Óscares. Onde é que já ouvimos isto? A toda a hora, como justificação para todos os crimes, excessos e violência masculina. Não deixa de ser irónico que a masculinidade, construída como matriz da racionalidade (por oposição ao feminino, caracterizado como “emocional”) seja, afinal, tão alegadamente irracional quando se trata de justificar e normalizar a violência.

Uma última nota sobre o humor: não tenho uma posição fechada sobre os limites do humor (tendo, até, a pensar que não há temas à partida tabu). Sei apenas que o sexismo não tem imunidade ao escrutínio só por ser – ou se apresentar como – humor. “Era uma piada” não é um escudo, um livre passe nem um argumento definitivo (será um argumento de todo?) para formas de expressão sexistas, racistas ou homofóbicas.

Recusar o guião de protecção masculina não significa fazer o elogio da indiferença colectiva perante uma ofensa, humilhação ou piada sexista (como escrevia a feminista Alice Porto no Facebook, “esse mito da mulher guerreira que mata todas no peito e não precisa de suporte é uma bela porcaria também”, porquanto promove a ideia de que cabe às mulheres, exclusivamente, reagir ao sexismo). A “piada” de Chris Rock sobre uma mulher sem cabelo, causada por uma doença que a penaliza num meio onde a imagem das mulheres é cruelmente escrutinada, merecia, certamente, reflexão, como tão bem lembrou a investigadora feminista Júlia Garraio. Mas haveria, seguramente, outras (tantas) formas de lhe reagir, por entre silêncios, apupos ou declarações. Nunca com uma chapada em defesa “da minha mulher”.

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