Não passar ao lado do essencial

Cinco vectores com impacto nas escolhas futuras, a considerar pelo novo Governo.

A investidura do Governo ocorre num quadro internacional periclitante e de acentuada incerteza. Tal obriga a pensar de forma mais aprofundada os problemas com que o nosso país se depara, e que numa democracia pluralista respeitam – é bom relembrar – a todos os cidadãos. Consideramos cinco vectores com impacto nas escolhas futuras:

Primeiramente, precisamos de situar melhor os interesses nacionais desta comunidade política que é Portugal, mais consentâneos com uma história de cerca de nove séculos de existência. Temos tido uma incapacidade assinalável de definir de forma mais eficaz as políticas públicas 36 anos após a entrada na União Europeia e 48 anos depois do 25 de Abril. Daí, a perduração de problemas estruturais. A integração europeia é um instrumento crucial de modernização do país, mas continua a haver um défice importante de reflexão sobre o posicionamento de Portugal. É, pois, fundamental redefinir mais inteligentemente os objectivos em cada instância do processo de integração, que devem ir muito para além do “choradinho” dos fundos comunitários.

Por não termos diversificado suficientemente a origem do investimento estrangeiro em Portugal no quadro da própria União Europeia, estamos confrontados com a situação penosa de cerca de 50% das nossas privatizações no sector fundamental da energia terem ido parar às mãos do Estado chinês. Tal não se coaduna com a hierarquia das prioridades de uma nação cujo perfil atlântico abarca duas estratégicas regiões insulares, está integrado na UE, é fundador da NATO, e encontra-se inserido num quadro geopolítico de grande amplitude que vai do Atlântico Norte ao Atlântico Sul.

Impõe-se, por outro lado, uma referência à política monetária europeia, excessivamente restritiva - ao contrário das opções de outros grandes players como os Estados Unidos ou a China - que não considera a desindustrialização que ocorreu nos Estados-membros, incluindo Portugal. Note-se que a Alemanha não perdeu a base industrial, e isso talvez explique a sua relutância em implementar políticas de maior liquidez no que respeita ao euro. Quando se equaciona a transferência de produção para o Oriente, estamos a sublinhar a brutal transferência de riqueza, de capitais e de empregos. No nosso caso, a perda de uma parte considerável da indústria também se repercutiu nos recursos fiscais disponíveis. Entendemos, aliás, que será necessário um muito maior rigor e transparência na afectação dos recursos financeiros, pelo que é imperativo assegurar um combate sem tréguas à corrupção.

Segundo, no quadro de uma meditação séria sobre as nossas maiores vulnerabilidades não podemos esquecer que, segundo o Observatório da Emigração, mais de 965 mil portugueses saíram do país entre 2010 e 2020, com as consequências que tal sangria de talento representa. A este dado soma-se um cenário alarmante em termos de demografia. Em 2021 registou-se um recorde histórico na quebra de nascimentos, que representam apenas 63% dos óbitos - um saldo natural negativo inédito nos últimos 110 anos. Estas duas realidades requerem, doravante, premente atenção.

Terceiro, a necessidade de investimento nas áreas de segurança e defesa de forma a contribuir, quer para a redução dos factores de vulnerabilidade, quer para o aumento da relevância de Portugal, obriga a reflectir sobre as incongruências nos recursos existentes. Actualmente o país conta apenas com um efectivo que não ultrapassa 9820 praças! Sublinhe-se que entre 2015 e 2021 esta categoria militar sofreu uma redução de 39%, uma diminuição incompreensível e preocupante. A história das relações internacionais mostra-nos recorrentes exemplos de inadvertência que tiveram custos irremediáveis. Este problema assume agora urgência, de modo a permitir às forças armadas a continuidade de participação activa em coligações internacionais seja no quadro das Nações Unidas, da UE, da NATO, ou da CPLP.

No respeitante à “Bússola Estratégica”, em fase de ultimação, que ambiciona elevar a UE a outro patamar, a nova cultura de segurança e defesa comum visa um novo equilíbrio em matéria de cibersegurança, ameaças híbridas, e no pilar de segurança marítima - crucial para Portugal. Os objectivos passam por potenciar o papel-chave de moderação da UE, proteger a estabilidade das democracias, e aferir a visão estratégica na abordagem à resolução de conflitos. No capítulo da cibersegurança - fonte de especial preocupação - Portugal tem sido alvo de actividades maliciosas de espionagem por parte de potências estrangeiras. Aquilo que se observa nas chamadas ciberoperações são sobretudo tentativas de alcançar objectivos estratégicos sem a necessidade de ataques armados, sendo que a dissuasão clássica não é uma estratégia eficaz no ciberespaço. Como indicam os mais recentes estudos de Harknett e Smeets, o esforço de vigilância permanente no ciberespaço requer estratégias de persistent engagement, cada vez mais instrumentais na contenção de ciberameaças.

O quarto vector prende-se com a importância decisiva da economia dos mares e do oceano que deve constituir uma prioridade cimeira, e em relação à qual se impõe uma aposta consistente e de longo prazo. Existe demasiada retórica, muitos “chavões” e quase nenhumas realizações. Daqui decorre a necessidade de Portugal aumentar o esforço de pesquisa dos recursos minerais e estratégicos do fundo do oceano sobre o qual almeja mais direitos, através da expansão da plataforma continental. Tal implica o investimento num novo navio oceanográfico. Augura-se o reforço dos meios da Marinha, que passam pela entrada em funcionamento dos “patrulhões” e de um navio reabastecedor. Do mesmo modo, a recomposição do número de fragatas não pode deixar de ser equacionada.

Quinto, a ponderação da ascensão da China nos planos geoeconómico e militar requer uma reflexão criteriosa. Dado o contexto da repugnante agressão empreendida pelo Kremlin à Ucrânia, esta alusão poderia parecer um contra-senso. Ao invés, a guerra em curso oculta o problema maior das ambições hegemónicas da China que questiona a estabilidade de um mundo aberto marcado pela liberdade de navegação e pela livre circulação de bens ao longo das últimas oito décadas.

Cumpre deixar um alerta sobre as posições dominantes por parte de empresas do Estado chinês não só no sector das infra-estruturas eléctricas em Portugal, mas também nos sectores das águas e da saúde, situações que configuram erros estratégicos. Questiona-se como empresas de referência portuguesas possam estar ao serviço de Estados não-democráticos e que não são nossos aliados - como frisou o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros. Acresce que Portugal foi o primeiro país da zona euro a emitir dívida pública em moeda Renminbi. A ciência política evidencia que o factor de penetração é diferente da simples interconectividade. Esta distinção conceptual permite derivar um impacto negativo na autonomia relativa do Estado português. Tais processos afectam seriamente o nexo de inserção geopolítica do nosso país, bem como a sua própria identidade estratégica, aumentando as vulnerabilidades. Por tudo isto, recordando o grande António Vieira, é fundamental contrapor um “patriotismo clarividente e couraçado ao nosso descuido, à nossa presunção, e à nossa perpétua atenção ao particular”.

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