Antes de entrar em casa, observo atentamente o céu. Não vá o diabo tecê-las…

“A menos que ocorra uma catástrofe global — um impacto de meteorito, uma guerra mundial ou uma pandemia —, a humanidade continuará a ser uma grande força ambiental durante muitos milénios.”

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Erik Karits/Unsplash

Uma escuridão espessa cobre ainda o amanhecer de uma chuvosa noite de Primavera. “Abençoada chuva”, penso, esperançoso num abrandamento da seca que, numa lógica egoísta baseada na prática de um regime 99% vegetariano, não inflacione o preço de vegetais e frutos.

Olho para o céu. Quase limpo. A lua em quarto minguante continua bem iluminada e algumas estrelas ainda cintilam no céu negro, aqui e ali encobertas por nuvens pouco espessas que se movem em câmara lenta sobre elas. A leste, um ténue aclaramento do horizonte denuncia que o sol está prestes a nascer. Sinto frio e acelero o passo. O previsto é cumprir meia hora, mais coisa menos coisa, de caminhada apressada. Um ritual que cumpro diariamente para acordar o corpo e proporcionar aos pulmões uma valente dose de iões negativos, o segredo, segundo os orientais — no Oriente, a respiração é considerada uma ciência e a energia atmosférica entendida como um nutriente vital para a saúde do ser humano —, de uma vida longa e sã.

Daniel Reid, no seu livro The Tao of Health, Sex & Longevity, explica-nos o processo: “O elemento essencial no ar que carrega a carga vital do Qi [ou Chi, “energia vital"] não é nem o oxigénio, nem o nitrogénio, nem qualquer outro elemento químico gasoso, mas sim o íon negativo — um pequeno fragmento molecular altamente activo que transporta uma carga eléctrica negativa equivalente à de um electrão. Por contraste, poluentes como pó, fumo e produtos químicos tóxicos são transportados pelo ar sob a forma de iões polimoleculares grandes, preguiçosos, de uma carga positiva. Em ar poluído, os iões positivos desaceleram, armadilham e neutralizam os iões negativos activos, roubando a vitalidade do ar. Respirar tal ar é equivalente a comer comida de plástico, cheia de calorias vazias. No ar puro do campo, a proporção média de iões negativos para positivos é de cerca de três para um; no ar poluído da cidade, cai drasticamente para cerca de um ião negativo contra 500 iões positivos!”

Vivo nos arredores de Lisboa. Há uma vasta mancha verde em redor de minha casa, mas também um troço de auto-estrada a cerca de 200 metros. Às cinco e meia da manhã é raro ouvir um carro passar. O ar parece mais puro a esta hora e é numa marcha acelerada e a respirar a plenos pulmões que me dirijo ao parque arborizado que fica a três minutos de distância. Um silêncio profundo reina na via mais movimentada do bairro, onde durante o dia os carros passam sem parar. Toda a gente parece estar ainda a descansar. Toda a gente e não só. Passo junto a alguns quintais onde, a outras horas, os cães ladram à passagem de estranhos. “Hoje madruguei, os cães ainda estão a dormir. Será que os pássaros já andam pelo jardim?”, questiono-me.

Instantes depois, a resposta: um animado melro-preto (nome científico, em latim, é Turdus merula) salta de um galho para a calçada e mimoseia-me com um jovial chilrear. “Já andas por aqui…”, murmuro, sentindo-me invadido de uma alegria tal que, instintivamente, dou um passo com a intenção de o acariciar. “Lírico.” Com um apressado bater de asa, o pássaro junta-se a perto de uma dúzia de Turdus merula agrupados na relva molhada. “Ainda não foi desta”, lamento em voz baixa, enquanto aprecio a belíssima composição de luz e sombras vivas esboçada sobre o fundo verde brilhante, reflectindo a iluminação artificial. Encolho os ombros e prossigo, ouvindo a cantilena à distância, convencido de que os pássaros vivem felizes nesta paisagem criada pela mão do Homem. Também já vi coelhos bravos por aqui. Adaptaram-se. Os animais irracionais não devem pensar muito, simplesmente adaptam-se a quase tudo. Também nós, animais racionais (que pensamos demais), nos adaptamos a quase tudo. A quase tudo.

A abundância de melros neste jardim e em áreas envolventes levou a que um destes dias questionasse a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves sobre um eventual crescimento da espécie. Fi-lo na esperança de que o aumento do número de melros correspondesse a uma melhoria da saúde do ecossistema e da qualidade do ar. A resposta, célere, do biólogo Hany Alonso, defraudou as ingénuas espectativas deste ornitólogo amador: “O melro ou melro-preto é uma espécie que se distribui por todo o território nacional, sendo provavelmente uma das mais comuns e que ocupa uma grande diversidade de habitats diferentes, incluindo áreas bastante alteradas pela atividade e presença humana. É uma espécie bastante tolerante à proximidade do homem, o que a torna também uma espécie facilmente observada por toda a gente. Neste momento, a nível nacional, os dados que temos apontam para que as populações de melro estejam estáveis. Ou seja, não há nenhuma indicação de que nos últimos 20 anos tenha havido uma tendência de crescimento desta espécie.”

O parque parece limpo. Mas se observarmos os rebordos da calçada com a minúcia de quem procura para encontrar — “Cuidado! Os que procuram a verdade acabam sempre por merecer o castigo de a encontrar”, adverte-nos Enrique Vila-Matas no seu inesquecível Exploradores do Abismo —, descobrimos, aqui ou ali, uma palhinha, um rótulo plastificado, um pedaço de borracha... E a mente (tramada da mente!) perante tanta beleza, recupera a preocupante revelação de notícia lida na véspera: “Detectado microplástico no sangue humano pela primeira vez”. Heather Leslie, investigadora da Universidade de Vrije, em Amesterdão, nos Países Baixos, uma das entidades envolvidas no projeto de pesquisa intitulado Immunoplast, proferiu, a respeito do estudo, uma afirmação capaz de arrepiar de susto até os mais céticos da gravidade da ação destruidora do homem na ameaça à humanidade: “Agora provámos que a nossa corrente sanguínea, o nosso rio da vida, por assim dizer, tem plástico.”

Assustador. De quem é a culpa? De nós todos, claro, insaciáveis consumistas de roupa, brinquedos, carros, artefatos de toda a espécie, enfim, de uma lista interminável de coisas que aprendemos a olhar como essenciais. “Estamos mesmo a dar cabo disto tudo”, digo para mim próprio, recordando como ainda há pouco tentei tocar no melro. É enorme a probabilidade de o Homem estragar aquilo em que põe a mão, mesmo que não o faça por mal. Tantos são os produtos de plástico utilizados, por exemplo, na medicina, produtos que salvam vidas. E, ao mesmo tempo, o plástico está a envenenar-nos…

Em 2002, Paul Crutzer, investigador que recebeu o Prémio Nobel da Química em 1995 pela descoberta de processos químicos que causam o buraco de ozono, publicou na revista Nature um texto intitulado A Geologia da Humanidade, em que alertou o mundo para o facto de nos termos tornado numa força geológica: “A menos que ocorra uma catástrofe global — um impacto de meteorito, uma guerra mundial ou uma pandemia —, a humanidade continuará a ser uma grande força ambiental durante muitos milénios. Uma tarefa assustadora têm por diante cientistas e engenheiros, de orientarem a sociedade para uma gestão ambiental sustentável durante a era do Antropoceno. Isto exigirá um comportamento humano adequado a todas as escalas, e pode muito bem envolver projetos de geoengenharia de grande escala, internacionalmente aceites, por exemplo, para otimizar o clima. Nesta fase, no entanto, ainda estamos em grande medida a pisar terra incógnita.”

A caminhada prolonga-se por mais de uma hora. Entretanto, os candeeiros já se apagaram e é agora a claridade ainda indecisa do sol que me ilumina o caminho no regresso a casa. Ocorrem-me as palavras de Crutzer: “A menos que ocorra uma catástrofe global — um impacto de meteorito, uma guerra mundial ou uma pandemia —, a humanidade continuará a ser uma grande força ambiental durante muitos milénios.” Foi-se a escuridão e mais um dia nasceu. Estou feliz por isso, mas ao mesmo tempo preocupado. Antes de entrar em casa, observo atentamente o céu. Não vá o diabo tecê-las…


O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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