Maus tratos a pessoas autistas não é coisa do passado

Na Suíça do século XXI, crianças autistas foram trancadas em quartos, sujas com os próprios excrementos e privadas de comida na instituição que as devia proteger.

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Adriano Miranda/Arquivo

Quando li a magnífica história do autismo que é o livro Neurotribes, do jornalista norte-americano Steve Silberman, julguei ter em mãos o resumo de todas as atrocidades que fomos capazes de perpetrar contra pessoas com deficiência. Acreditei também ser algo do passado, pelo menos em países que consideramos prósperos. Estava errada. Em Genebra, no século XXI, crianças autistas foram trancadas em quartos, enlameadas nos seus próprios excrementos, atiradas para o chão, privadas de comida, arrastadas de um cómodo para o outro pelas suas próprias roupas. Repito: em Genebra, numa instituição que dista pouco mais de dez quilómetros do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

Nas últimas semanas, este capítulo lamentável do ensino público suíço tem feito manchetes em vários órgãos de comunicação do país incluindo o Le Temps e o Heidi.news, que fizeram uma investigação conjunta provando a ocorrência reiterada de maus tratos no centro terapêutico-pedagógico de Mancy. O espaço foi criado em 2018 com a finalidade de acolher, em regime de internato, até dez pessoas autistas com idades entre os 8 e 18 anos. Os casos encaminhados para a instituição são aqueles percepcionados como mais “severos”, ou seja, crianças e jovens com deficiência intelectual e que precisam de apoio significativo para realizar todas as tarefas do quotidiano.

Antes de o escândalo eclodir, ocorreram várias movimentações internas no sentido de alertar superiores hierárquicos para o problema. Em 2019, um relatório foi entregue à direcção da instituição relatando episódios de negligência e abuso cometidos por alguns membros da equipa. Seguiu-se uma carta escrita pela actriz Natacha Koutchoumov, mãe de uma das crianças agredidas, ao departamento do cantão de Genebra responsável pela Educação. A partir daí, não foi mais possível manter o horror entre as quatro paredes de Mancy: houve missivas anónimas, denúncias, demissões (que, curiosamente, nunca tocaram a responsável máxima da tutela) e uma auditoria.

O relatório da auditoria, divulgado este mês, revela falhas sistémicas: as instalações não eram adequadas aos utentes, os recursos disponíveis para estimular e apoiar os jovens eram limitados, a equipa que os acompanhava dia e noite não tinha a experiência e o treino necessários para prestar cuidados àquela população específica e, por fim, para coroar esta comédia de erros, quem estava a ocupar posições de chefia assumia uma postura conivente ou, no mínimo, pusilânime. Há relatos de profissionais que, apesar de bem-intencionados, não dispunham de formação especializada em autismo para lidar com comportamentos violentos ou inapropriados. Havia rotatividade e substituições frequentes nos quadros. Isto dava azo a respostas inadequadas que tornavam o ambiente em Mancy desagradável tanto para quem morava como para quem trabalhava ali.

Vale recordar que os jovens que demonstravam agressividade não o faziam necessariamente por serem autistas, mas talvez porque não beneficiavam de um programa estruturado, incluindo terapias e actividades adaptadas, que lhes proporcionasse estímulos positivos e bem-estar. Comportamentos violentos não são um critério de diagnóstico para autismo.

O que o caso Mancy nos mostra é que não basta estar num país rico, valorizado pela qualidade de vida e coesão social, para que as instituições funcionem na perfeição. Recursos humanos e financeiros importam, claro, mas a forma como são alocados depende das prioridades e valores de cada entidade. Erros sistémicos não nascem num vácuo socioeconómico – pelo contrário, eles costumam medrar numa moldura cultural que já os normalizou como inevitáveis, que não está treinada para os detectar e corrigir antes que se transformem numa bola de neve. Genebra, a cidade que nos encanta por tantas e boas razões, alberga também um tecido social que não está familiarizado com a inclusão. Ao contrário de Portugal, o cantão suíço mantém um sistema educacional que isola crianças com deficiência, desde a mais tenra idade, em escolas separadas e muitas vezes distantes dos centros. Não me espanta que uma instituição que resiste tanto à inclusão e à integração, que acredita que segregar é uma forma de ensinar melhor, tenha ignorado os sucessivos alertas de que algo muito grave se passava ali.

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